Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Vivemos um momento em que tudo, no dia a dia, parece muito instável, como se não houvesse um movimento orgânico por trás. Mas o movimento de fundo existe. Sofremos uma espécie de terremoto político movido pelo golpe institucional do impeachment contra o governo legitimamente eleito. O mais importante é ver o tamanho do desmanche que o terremoto significa para os fundamentos democráticos conquistados pela sociedade brasileira nas últimas três a quatro décadas. Na verdade, ainda não temos ideia completa da profundidade disto e de quanto perdemos. Vamos notando e nos surpreendendo a cada dia com o abalo sísmico na medida em que nos são propostas reformas que nada tem de reconstrução democrática, mas sim de remoção até dos vestígios do que tínhamos de possibilidade de avanços em termos de alguma democracia substantiva. Ou alguém tem dúvida do que significam a PEC do congelamento de gastos sociais, já aprovada, a MP do Ensino Médio e a tal “Escola Sem Partido”, a MP da Regularização Fundiária, as parcerias público-privadas e o redirecionamento do BNDES para financiar a total privatização, a mudança na Lei de Partilha na exploração do petróleo, agora a escandalosa proposta de Reforma da Previdência, entre tantas outras medidas?
Bem, o momento que vivemos, enquanto as maldades todas vão se manifestando, é de ondas secundárias do tal terremoto político. Aí fica a sensação de falta de organicidade, pelos sobressaltos das notícias do dia a dia. A verdade é que a institucionalidade toda da democracia formal está aprisionada e esgarçada. Os verdadeiros donos do poder e de sua proposta de democracia de baixa intensidade com “fascismo social”, na boa expressão do Boaventura Sousa Santos, não expõem suas caras. Temos aqueles personagens todos, nada republicanos, da “Lava-Jato”, tanto juízes e promotores, como os figurões empresariais e políticos investigados. Como uma espécie de representante orgânico dos verdadeiros donos do poder no momento só temos aquele gerentão do Meireles, com a chave do cofre do Estado. Mas o Governo Temer, olhando o seu conjunto, é formado por oportunistas de ocasião e sua coalizão no Congresso é de um bando de raposas, que segue onde pode obter vantagens econômicas ou proteção política e legal. Aqui importa que se diga em alto e bom som: o PMDB não é, hoje, um partido capaz de agregar forças e dar organicidade para um projeto de poder. Ele se presta a isto, a servir como solução ocasional e formalmente democrática aos golpistas. Nem o Rodrigo Maia do DEM, presidente da Câmara, ou o Eunício Oliveria do PMDB, presidente do Senado, podem ser vistos como líderes orgânicos. Aliás, suceder aos golpistas Cunha e Renan mostra como a conjuntura revela mais e mais figuras e quase líderes dos problemas da mesma crise de fundo por que estamos passando. O que faz o PSDB, além de emprestar o Serra para ministro de relações exteriores, com um projeto escandaloso de alinhamento com os EUA e o neoliberalismo, no momento em que Trump mostra as garras do imperialismo com nacionalismo radical da “América grande”?
Temos, sim, manifestações diárias da grave e profunda crise que nos atinge no cotidiano. Os Estados, praticamente todos eles, que tem com as Prefeituras a grande responsabilidade de garantir os serviços provedores de direitos de cidadania no dia a dia, estão simplesmente falidos. Cadê a saúde, a educação, a segurança pública? A isto se junta algo mais grave: o desemprego em níveis recordes, que afeta de forma radical as condições de milhões de jovens e de famílias inteiras. A situação seria ainda mais grave não fosse a preservação do Programa Bolsa Família – quase integral, por enquanto – e se nosso bravo povo não voltasse à velha tábua de salvação dos bicos e do trabalho informal, últimos recursos nas vicissitudes da vida. Brasília não está nem aí diante da deterioração tão rápida na qualidade de vida da maioria. O que virou prioridade absolta é gerar superávit orçamentário para pagar banqueiros e financistas da dívida pública, aquele nosso 1%, que consome a parte mais substantiva do orçamento público.
Diante disto tudo, como analisar a conjuntura política e tentar saber como nela intervir? Resistir para dificultar a tarefa de reconstrução do país para a expansão do livre capital, que quer se livrar de qualquer entrave democrático no seu caminho, a gente até faz e quer fazer mais. Mas sem entender a correlação de forças políticas e suas contradições internas e sem entender as nossas contradições e fragmentações, ainda mais sem clareza de um novo imaginário aglutinador e mobilizador, a tarefa de resistência é totalmente infrutífera. Estamos numa grande enrascada!
Como cidadania ativa, engajada na construção democrática de uma sociedade livre, igualitária na diversidade e diferente na igualdade, solidária, participativa, de cuidado, convivência pacífica e compartilhamento, com bem viver e respeito à integridade do bem comum natural que nos foi dado, precisamos de esforço analítico sistemático dos movimentos da estrutura e da conjuntura na história. Precisamos de análises finas de conjuntura em sintonia com as análises de processos e movimentos mais profundos. Precisamos saber como se movem as contradições entre classes sociais e entre suas frações. Precisamos de lentes mais fortes e olhares mais aguçados, enfim.
Mas, só isto não basta. Nossa análise será tacanha se deixar de lado a análise sobre nós mesmos, nossa situação, nossas contradições, com atomização de resistências e lutas. Existe um ativismo nas bases populares que não estamos ouvindo e vendo nos espaços instituídos da esquerda, como sindicatos, movimentos sociais, organizações de cidadania ativa, defensores de direitos e outros. Ou, talvez, vemos sem entender, porque são novos e atendendo a necessidades concretas vividas. Falta-nos aquele olhar arguto para a aparente cacofonia das ruas. O olhar mais voltado ao poder e às possibilidades de participação dos governos petistas nos desviou da gênese inspiradora de resistências e insurgências cidadãs, o cotidiano da vida nas grandes periferias urbanas e no agredido e sofrido mundo rural. Nosso olhar e nossas análises precisam escutar e entender as vozes das ruas, das favelas, das periferias, dos indígenas, dos pescadores, dos posseiros, dos sem terra, dos agricultores familiares, das mulheres, do que enfrentam o racismo e a discriminação por suas opções de vida, das multidões populares e trabalhadoras deste nosso Brasilzão sofrido e agredido.
Bem, escrevo isto pensando no desafio pequeno, mas fundamental, de voltar a fazer análise sistemática de conjuntura como esforço coletivo. O Ibase aceitou o desafio e está se abrindo para isto, lembrando a sua tradição lá nos primeiros anos de sua formação e institucionalização como organização de cidadania ativa. Vamos organizar um espaço livre de análise e de debate da conjuntura entre os “cúmplices” que se sentirem motivados para tanto, de dentro do Ibase e nos seus vários círculos de parceiros e amigos. Será um encontro mensal, ou sempre que a conjuntura impor como necessário, para o livre pensar responsável, cidadão, em busca do bem comum. Sintam-se convidados todas e todos, mas não se sintam culpados se não der para participar. Estamos decididos a compartilhar ideias discutidas com todos pelas novas TICs. Mas, por favor, não nos cobrem perfeição, antes participem on line, critiquem, proponham algo novo, completem nossos pontos de vista. Queremos instaurar um clima de debate engajado e, porque não, apaixonado, caminho para um engajamento gratificante ainda mais radical.
Rio, 12/02/17