Por Paulo Vannuchi
texto originalmente publicado na revista Democracia Viva 47


Paulo Vannuchi. Crédito: Elza Fiúza/ABr

No fundo, a disputa política até hoje em curso sobre a abertura dos arquivos da ditadura militar, bem como sobre uma nova legislação a respeito do assunto, é uma disputa por mais democracia ou por menos democracia. Com certo otimismo, cabe admitir que nos últimos anos ocorreu um nítido desbloqueio do debate sobre o Direito à Memória e à Verdade, ameaçado então de seguir para o esquecimento ou limitar-se a um mero registro histórico desvalorizador.
Esse desbloqueio resultou da incansável pressão de familiares dos mortos e desaparecidos políticos, bem como de organizações da sociedade civil comprometidas com a defesa dos direitos humanos. Sua luta resultou em avanços já no governo FHC: em 1995 foi aprovada a lei 9.140, criando a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e, em 2002, foi aprovada a lei 10.559, instituindo a Comissão de Anistia, que assumiria atuação mais politizada sob a presidência de Paulo Abrão, na gestão de Tarso Genro como ministro da Justiça.
No governo Lula, passos concretos foram o lançamento do livro “Direito à Memória e à Verdade”, em 2007, complementado em dezembro de 2010 com outro livro, “Habeas Corpus – a busca dos desaparecidos políticos no Brasil”, assim como as iniciativas coordenadas pela então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, de abrir os arquivos da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), em 2005, e lançar o projeto Memórias Reveladas, em 2009, cuidando também de enviar ao Legislativo um projeto que buscava democratizar a lei de acesso a informações.
Momento de impacto nessa trajetória sequencial foi a assunção, por Lula, ao final de 2009, da proposta de Criação da Comissão Nacional da Verdade,item central e diferenciador do Plano Nacional de Direitos Humanos 3, o PNDH-3, cujo conteúdo geral havia sido construído democraticamente na 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, e que sofreu fortes ataques tanto das áreas mais conservadoras do governo federal quanto da mídia hegemônica.
No governo Dilma, até por força da biografia pessoal da presidenta, o debate segue crescendo e envolve duas disputas bastante interligadas: a tramitação na Câmara dos Deputados do projeto que institui a Comissão da Verdade, e a aprovação pelo Senado, ou não, do projeto sobre acesso a informações. Em ambas as frentes, está em questão mais uma vez a velha tendência brasileira ao acomodamento entre passado e presente, por meio de uma esponja que impede o processamento e apaga a reflexão, condenando nosso país à eterna repetição.
A Comissão da Verdade – e não outros itens polêmicos do PNDH-3 – gerou um conflito interno no governo Lula que ficará registrado como a mais grave fissura ideológica exibida em seus oito anos de presidencialismo de coalizão. O choque, dentro do mesmo governo, entre segmentos comprometidos com a afirmação histórica dos direitos humanos e setores mais vinculados à herança do passado elitista produziu efeitos ainda hoje operantes.
Um deles está nas divergências entre a opção, que defendo, de aprovar com urgência o projeto tal qual veio do Executivo – com suas possíveis imperfeições, mas satisfatório –, para desencadear uma nova dinâmica política que deverá superar o atual ambiente de hesitações; ou submeter a proposta à tramitação rotineira, que tanto poderá resultar em avanços quanto em retrocessos.
Sobre a lei de acesso a informações, a estreia da ministra Ideli Salvatti nas Relações Institucionais gerou informações e desmentidos que trazem insegurança. Em seu primeiro dia no cargo, anunciou um recuo do governo para atender a exigências dos senadores José Sarney (PMDB-AP) e Fernando Collor (PTB-AL), favoráveis à manutenção do sigilo eterno para determinados documentos. Contrariava, assim, a decisão anterior de Dilma, que preferia aprovar no Senado o projeto tal qual viera da Câmara, aperfeiçoando a proposta inicial do Executivo para evitar qualquer hipótese de sigilo eterno. A própria presidenta desautorizou as declarações de Ideli, mas restou, no mínimo, uma falta de nitidez.
Em ambos os temas, é absolutamente legítima a exigência das representações de familiares e vítimas da ditadura no sentido de que governos com as raízes históricas e os compromissos democráticos, que envolvem tanto a anterior quanto a atual Presidência da República, assumam uma posição corajosa, firme e serena, pondo fim às ambivalências e hesitações que ainda estão presentes em boa parte das iniciativas adotadas. O sentido é de avanço, mas sempre envolto em temores e receios que não possuem qualquer fundamento.
Mas é imperativo pressionar e argumentar com mais racionalidade para garantir um diálogo democrático consistente, impedindo que a palavra de ordem “Pela abertura total dos arquivos” seja ouvida nos círculos decisórios como um bordão vazio ou rebaixado, que ignora as exatas e concretas condições da disputa atual, repetindo a mesma frase de dez anos atrás, como se o contexto não tivesse mudado de maneira palpável.
A necessária pressão da sociedade civil não pode ignorar que os criminosos sempre cuidaram de apagar os próprios rastros e impressões digitais, sendo favorecidos no caso brasileiro pelo prolongado gradualismo de uma transição política que, de certa maneira, se estendeu por mais de uma década sob controle dos próprios detentores do poder ditatorial. Arquivos foram destruídos, sim, sem sombra de dúvida. Mas não merece crédito a alegação de que todos os registros contendo informações sobre o aparelho de repressão foram incinerados. Veteranos dos porões da tortura, como Curió e muitos outros, já exibiram publicamente arquivos apropriados indevidamente por eles, em desobediência expressa a uma determinação de Dilma quando ministra da Casa Civil.
Também não surtirá efeito positivo uma crítica que mencione Lula ou Dilma como responsáveis pela ocultação consciente de arquivos clandestinos para proteger torturadores. Trata-se, muito mais, de ambiguidades e hesitações que são próprias das condições concretas em que ambos os presidentes montaram sua base de apoio, nem sempre acertando, mas sempre reafirmando claros compromissos com as demandas por democratização.
Nesta, como em qualquer outra luta, é preciso compreender o cenário com todas as suas complexidades e contradições, para adotar uma ação e um discurso que produzam os resultados visados, e não mera retórica ideológica. Dilma vem reafirmando seu compromisso com a questão, assim como a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, e outros integrantes do governo. A pressão deve seguir adiante, exigindo o que ainda não foi assegurado. Mas sempre tendo em conta que, nesse caso específico, a cobrança não está sendo endereçada a um inimigo.

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