Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Não dá para acompanhar as notícias da “desordem” em que estamos metidos. Falta até paciência para abrir um jornal ou ver e ouvir noticiários sobre as mesmas más notícias de violência, falcatruas, falta de governança e ética na política, os favores a comparsas no lugar dos direitos iguais de cidadania, que se repetem e se ampliam, só mudando um pouco os protagonistas e os lugares. Brasília do governo “ordem e progresso” é um vergonhoso palco do “toma lá, dá cá”. Qualquer expediente vale para comprar apoio de grupos partidários em busca do próprio interesse e formar um bando do fisiologismo nacional como bancada da governabilidade. Que projeto? Ter poder e imunidade… com acesso a favores e ao cofre do tesouro nacional. Tudo com apoio velado do sistema de interesses empresariais e financeiros e com a cumplicidade do Judiciário. Enquanto isto, a segurança foi deixada para os próprios criminosos, nas áreas populares e nos presídios, com expansão vertiginosa da violência e das mortes. Nas terras do agronegócio em expansão, este cuidado foi deixado para o financiamento de fazendeiros a jagunços para matar. Aí parece que o Estado não quer mexer para não perder o apoio da bancada ruralista. Mas a “ocupação” de cidades por Forças Armadas, cada vez em mais lugares, será um prenúncio de possível tomada de assalto da própria democracia em nome da …”ordem e progresso”?
A nossa “desordem” parece até reflexo do que de mil outras formas está acontecendo no mundo sob o domínio real e hegemonia quase inconteste das grandes corporações capitalistas globalizadas, livres das regulações nacionais e multilaterais. Assim, a gente nem tem para onde olhar ou fugir, apesar de mais de 60 milhões de migrantes terem tentado a sorte na busca de outras terras e outros países no ano de 2017. A intolerância e o ódio parecem marca dominante do momento mundial atual. E figuras esdrúxulas na frente de muitos governos tipo imperiais só pioram o quadro. Faz mal até lembrar de tais personagens! Como produzimos, enquanto humanidade, um quadro assim?
Não escondo minhas angústias neste começo de 2018 que parece estar repetindo e piorando o do ano passado. Em termos intelectuais e políticos, o consolo está sendo voltar a pesquisar e ler coisa melhor, em livros, na biblioteca e livrarias, além de um trabalho paciente de busca em sites e redes da internet. Por sinal, estou surpreso com artigos, relatórios, textos e entrevistas de pensadores de excelente qualidade que aparecem aí, tratando de temas fundamentais para a construção de uma nova visão e um novo imaginário para o futuro, com propostas de estratégias e caminhos. Não é para amanhã, não. É para depois. Quando? O tempo depende de nossa capacidade em se juntar ao esforço e construir movimentos planetários irresistíveis, desde o aqui e agora.
Com este espírito, saí para a minha caminhada matinal no Parque do Flamengo. Aliás, ele é notícia de repercussão quando acontece algo ruim, como assaltos e violência, coisa nem tão frequente no Parque, pela minha experiência de mais de 30 anos de convívio e compartilhamento do espaço. Enfim, um começo de cotidiano que gostaria de compartilhar com muito mais gente desta nossa sofrida cidade. Sei que neste Rio de Janeiro da desigualdade e da segregação o acesso a parques é quase um privilégio, longe de serem vistos e vividos como grandes bens comuns. Assim mesmo, é reconfortante e animador ver o Parque do Flamengo, sobretudo aos domingos, tomado por milhares de pessoas, muitas famílias inteiras organizando piqueniques ou festas de aniversário. Como enche o cotidiano as cenas de crianças livres para brincar, com as pistas fechadas a carros.
Como faço desde anos, aproveito a caminhada para a observação e coleta de sementes. O Parque do Flamengo, digo sempre, é um monumental jardim tropical, que devemos à visionária Lota e o genial naturalista Burle Marx. Para mim, se tornou uma reserva de biodiversidade e um lugar estratégico da prática do cuidado com a natureza. Coleto e classifico as sementes com apoio de uma boa coleção de livros, que tenho lá na Chácara Iru (“Iru” significa companheiro em tupi-guarani), no interior de Rio Bonito. Na chácara, produzo mudas para reflorestamento, pratico a jardinagem e horticultura e fruticultura orgânica, para autoconsumo e doação a amigos. Já classifiquei umas 30 variedades de palmeiras e umas outras 60 de arbustos e árvores existentes no parque, que Burle Marx usou como forma de desenho tropical com plantas.
Na coleta de sementes encontro uma janela para conversar com as pessoas as mais diferentes e surpreendentes. O mais curioso é o tipo de pergunta inicial: “Para que serve, dá para comer?”. A partir daí o papo rende e, em várias ocasiões, recebo ajuda na coleta. O interesse passa a ser o querer saber mais sobre a planta. Eu, cá com meus botões, sei que despertei um fundamental sentimento de cuidado com o nosso parque e o que nele contém, nosso bem comum indispensável. Neste último domingo, dia meio chuvoso pela manhã, consegui sete novas sementes.
Mas uma questão, que observo com sentimento de solidariedade misturado com indignação, é o trabalho fundamental de catadores de latas pelo Parque do Flamengo. Suas figuras revelam pobreza e agruras extremas, mal vestidas e carregando sacos de latinhas. Devem caminhar de um lado a outro do parque, num único dia, uns 20 km, tudo para coletar “nosso” lixo de latas e obter o dinheiro para o alimento do dia a dia. Depois de mais um choque ao ver catadores animados atrás das latas que nós jogamos com total desdém de consumidores, voltando para casa, fui pesquisar mais informações sobre os catadores de latas. Pasmem: um catador precisa recolher mais de 250 Kg de latinhas, algo de mais de 19 mil latinhas, no mês, para fazer o seu salário mínimo! É possível? Nunca me fiz tal questão. O certo é que eles contribuem de maneira fundamental para a coleta e reciclagem de quase 100% das mais ou menos 300 mil toneladas de latinhas que o Brasil produz. Tem mais, a reciclagem de um kg das latinhas significa gastar só 5% da energia que é necessária para produzir um kg da matéria prima primária, o alumínio. Basta pesquisar para descobrir mais.
Bem, por que ser catador é ser visto como marginal, como pessoa descartável? Que estigma! Isto, de uma nova economia, do transformar “lixo em luxo”, como dizia o ambientalista Lutzember, descartável em reutilizável e assim destruir menos a nosso grande bem com natural, o Planeta Terra, é fazer um trabalho essencial. Nossos governantes nem estão aí para a questão. Algo muito inicial se fez nos bons tempos da SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária, sob o comando do visionário Paul Singer. Mas agora, com o Governo Temer que só pensa em “liberar” o extrativismo, sem nenhum controle ambiental ou social, para preservar o poder, tudo ficou pior.
Gostaria de concluir com uma espécie de “moral da história”:
- Existem boas práticas de cuidado e preservação, com sentido de busca das condições de viver, no nosso cotidiano. Além de catadores de latinhas, temos os catadores de papelão, plástico e ferros, assim como as cooperativas e o Movimento Nacional de Catadores espalhados pelo país inteiro, temos a ASA – Articulação do Semiárido, com as cisternas e os bancos de sementes, temos o movimento da agroecologia e agricultura orgânica, temos as iniciativas e movimento da economia solidária, entre tantos outros.
- As sementes do outro Brasil resistem e estão brotando por aí. Olhemos mais para elas! Respeitemos mais e apoiemos o trabalho essencial que fazem coletores e recicladores de nosso lixo. Procuremos tornar tudo mais visível e debatido. Sonhemos juntos para recolocar o cuidado no centro de uma nova economia, um novo projeto de país.
Rio de Janeiro, 08/01/18