Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Caro Amigo,
Como vai? Tudo bem por aí? Faz tempo que não recebo notícias suas. Imagino que você esteja curtindo os seus irmãos Henfil e Chico Mario e todos os amigos e amigas que compartem com você a Chácara do Céu, no espaço sideral, cercado de estrelas que a gente nem vê direito daqui da terra. Por sinal, a cerveja por aí é boa? Você encontrou o Vivaldi para um concerto particular das Quatro Estações, que você tanto gosta? O Tom Jobim e o Vinícius de Morais criaram alguma canção daquelas que mexem com o coração? E o que de novo está cantando a Elis Regina?
Desandei a fazer perguntas e quase esqueci que estou escrevendo hoje, 3 de novembro, para lhe desejar feliz aniversário, amigão e companheiro! Afinal, 80 anos é algo memorável. Até deu vontade de fazer outra vez aquele costelão inteiro, como naqueles bons tempos do Ibase na Rua Vicente de Souza, 29. Lembro ainda você, magro como é, pegando uma ripa inteira de costela para comer. Aí na Chácara do Céu vocês se reúnem para um churrasco? Aliás, tem boi por aí? Como cheguei aos 70, começo a pensar no dia que vou me juntar a vocês. Não sei se aguentarei morar aí sem churrasco.
Lourdes e eu, com a Maria, seu filho Daniel e mais um montão de pessoas de ontem e hoje do Ibase, almoçamos no Amarelinho da Cinelândia. Foi depois de ver um documentário sobre você no cine Odeon. Coisa séria. Acho que até você gostaria de vê-lo. Sem dúvida, no final, seu comentário seria uma piada daquelas de fazer a gente deixar de ser sério, como sempre. Eu pensava que sabia quase tudo sobre você, mas não. O filme me surpereendeu pela qualidade, respeitando aquilo que você sempre valoriza, a radical cidadania e a transparência, mesmo nos erros que todos cometemos. Mas não precisava dar aquele destaque ao Serra. O fato dele ter sido da AP e o ter acolhido no começo do exílio, no Chile, não justificava. Muita história rolou após. Afinal, vocês seguiram caminhos de ativismo político muito diferentes. Ele fala da Ação da Cidadania e de você nela, mas o fato é que ele foi um total ausente naquela hora.
Pois bem, o que queria lhe contar é que Maria me pareceu muito bem, mesmo. Até bebeu uns chopinhos. Falou do Henrique e de seu neto, vivendo lá na Bahia. Acho que daí da Chácara do Céu você o localiza sem o Google, esta nova tecnologia que entrou na nossa vida aqui na terra de forma avassaladora e sem a gente avaliar direito o quanto nos domina e, sobretudo, vigia. O Daniel também está muito bem. Te deu duas netas que você iria adorar! A iniciativa do filme foi dele, justo para lembrar o seu aniversário. Continua firme inventando coisas, combinando cultura e cidadania, bem ao seu gosto, Betinho.
O que está estranho é este nosso Brasil. Estamos de novo mergulhados numa daquelas crises brabas. O nevoeiro político é tão denso que a gente vê pouca coisa. Tudo está fora do lugar. Que bom que você está lá com os amigos, sem precisar se preocupar com a bagunça política daqui. Falta aquele imaginário que dá sentido e mobiliza, que você, com fina sutileza política, sacava muito bem nos velhos tempos aqui na terra. Aliás, nos faltam ideias e nos faltam portadores delas, líderes de verdade. Temos o truculento Cunha, acusado de corrupção, como presidente da Câmara e o Renan, aquele escudeiro do Collor, como presidente do Senado. Você imaginaria isto como possibilidade? O Congresso depende de uma agenda ditada por uma bancada que você, Betinho, estaria condenando em praça pública, numa daquelas campanhas de cidadania que eram sua especialidade. A bancada não é de partidos, mas de interesses corporativos escusos. Ela é formada por boi+bíblia+bala: ruralistas, fundamentalistas religiosos e contumazes representantes da direita armada. Os partidos são uma espécie de legenda de aluguel, organizações de angariar fundos escusos junto a empresas para fazer campanha eleitoral e ganhar eleição. Vivemos uma mercantilização e uma privatização altamente danosa do bem comum da cidadania como um todo, que é a política. Os partidos deixaram de ser partidos, no sentido político e sociológico. Aliás, alguns nunca foram.
Nesta conjuntura de crise, o mais lastimável é o PT, aquele partido que foi inovador, com movimentos de cidadania na base, com núcleos partidários discutindo propostas políticas, com orçamento participativo nos governos locais e que nos deu o Lula. Para chegar ao poder, depois que você partiu para a Chácara do Céu, o PT renunciou a ser força de transformação, se aliou aos velhos empresários e banqueiros pelo crescimento a todo custo e se contentou em promover crescimento capitalista com alguma condicionalidade em termos sociais e distributivista. Nos governos petistas depois de 2003, tal condicionalidade até funcionou enquanto a economia cresceu, baseada excessivamente na exportação de commodities, algo de volta ao modelo primário exportador. Tivemos o Bolsa Família, com 14 milhões de famílias sendo assistidas mensalmente, que você certamente apoiaria publicamente. Temos, também, muitas outras políticas no sentido de mais justiça social, mas sem afetar a lógica concentradora e destrutiva do capitalismo a la brasileira. Destaco aqui a política estratégica de aumento substancial do salário mínimo, com geração de milhões de empregos com direitos trabalhistas. Mas o fato objetivo é que os lucros cresceram muito mais nestes últimos anos e toda a estratégia desenvolvimentista do PT está se revelando insustentável. Não pense que o Ibase embarcou nesta. Desde a primeira hora, através dos meios de comunicação ao nosso alcance, apontamos os limites de querer fazer justiça social mantendo a mesma lógica capitalista de crescimento como condição.
Agora estamos aí, com uma situação muito complicada. Aliás, Betinho, o Planeta Terra está numa enrascada daquelas que pode levar à implosão de tudo, após três séculos de capitalismo. Estamos diante da possibilidade de barbárie. Pior ainda é a crise climática gestada na expansão do sistema de capitalista, produtivista e consumista, movido pela acumulação de riquezas sem limites. Estamos destruindo as condições de vida no Planeta Terra, de vida humana e de toda forma de vida. Desafio que já aparecia quando você estava aqui entre nós. Lembra da Rio 92, aquela magnífica Conferência da ONU sobre Meio Ambiente? Nada do acordado foi de fato implementado. A coisa se agravou de tal modo que já se discute se a mudança climática poderá ou não ser limitada em dois graus centígrados. E o tal capitalismo, que você odiava, está agora investindo em economia verde, como se o problema fosse de cor e não de sua lógica intrínseca.
Mas voltando ao Brasil, devo reconhecer que estamos mergulhados numa crise grande. Discute-se a possibilidade de impeachment da presidente Dilma, vitoriosa na eleição de outubro de 2014. Também, quem pode decidir se esta loucura se instala ou não é o Cunha, profundamente comprometido na corrupção que envolveu a Petrobras, nossa grande empresa cidadã, apesar dos problemas que enfrenta. Muita gente graúda vem caindo no que a Polícia Federal chamou de operação “Lava-jato”. A limpeza sempre é bem vinda. Mas não da para aguentar o viés da grande mídia, que tenta fazer nossas cabeças nesta história de corrupção, atribuindo tudo ao PT e seus governos, esquecendo que até ela mesma está profundamente comprometida com os interesses patrimonialistas e pouco cidadãos de gente nada exemplar, daqueles que lamentam não ser os locupletados da vez pela roubalheira.
Enfim, Betinho, “a coisa aqui está preta”, como já disse o Chico. Coisa que nem se pode mais dizer, pois a intolerância anda à solta, especialmente quando o tema é o racismo. No Ibase voltamos a imaginar “trincheiras” como forma de resistência cidadã em tal conjuntura. Precisamos resgatar aqueles princípios e valores que estão na origem e são a razão de ser do Ibase como organização de cidadania ativa, que prioriza a planície e não o Planalto, como você gostava de lembrar. Nós, no Ibase, vamos tentando fazer jus ao seu legado, Betinho, mas a coisa está feia. Temos, como costumo dizer, uma sustentabilidade insustentável. Estamos bem hoje, mas nada garante o amanhã. Mas somos ousados como você queria que sempre fôssemos. Talvez possamos ser melhores no que fazemos e ter mais impacto. Por favor, nos dê uma pista, uma luz no final do túnel! Mande um recado, por favor, nem que seja na forma de um raio de luz de estrela, apontando caminhos para quem acredita que só a cidadania poderá fazer a diferença.
Saudades e abração,
Rio, 3 de novembro de 2015
Cândido