Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase
Na última crônica, diante da conjuntura em que vivemos – em sua versão de tragédia humanitária, política e econômica de grandes proporções, devido às ameaças da letal pandemia da COVID, com um total desgoverno e seu ataque autoritário e fascista à institucionalidade democrática – afirmei enfaticamente que a democracia em primeiro lugar, sim, é uma tarefa urgente e inadiável, pois ela é determinante de possibilidades de ação política livre e transformadora para criar bases de outro futuro para nós, nossas filhas e filhos e as gerações que virão depois. Para a defesa da democracia se fazem necessárias alianças amplas, mas nada acontecerá sem ampla mobilização cidadã. E se almejamos uma democracia transformadora e criadora de nova economia e nova sociedade em base à justiça social e ecológica cabe à cidadania o protagonismo na disputa de imaginários capazes de despertar movimentos irresistíveis. Ou a transformação nasce do chão da sociedade civil, dos múltiplos e diversos territórios de cidadania, como força de empuxe e instituinte ou, simplesmente, não acontecerá. As alternativas, como ajustes sem mudanças substantivas ou simplesmente com preservação e aprofundamento da mesma lógica socialmente excludente e ecologicamente destrutiva atual, com todas as suas mazelas, podendo impor a barbarização total, são reais e muito possíveis. O desafio está escancarado e a única certeza é que cidadania em ação sempre faz a diferença.
Dando seguimento a tal linha de reflexão e busca de alternativas, as questões que precisamos enfrentar exigem imaginação, ousadia e determinação coletiva, num fazer político persistente e permanente, propondo e disputando hegemonia democrática ecossocial. Trata-se de condicionalidade política estratégica para um processo virtuoso de transformações e conquistas pelo protagonismo da pluralidade de sujeitos coletivos cidadãos em luta, pondo no centro os bens comuns, como a saúde, a educação e o conhecimento, a natureza e a construção de um Brasil de bem viver para todos e todas. Por um lado, é uma questão de ideários mobilizadores, de agendas e propostas para organização da sociedade, sua cultura e dinâmica, da economia e do poder público necessário, que emanam das resistências e lutas. De outro, trata-se de como chegar aos acordos e compromissos e, sobretudo, como implementá-los de forma democrática. Precisamos de rumos, mas os caminhos se fazem no andar e redefinem os trajetos a seguir, pois eles mesmos destampam novas contradições no processo coletivo de construção e descortinam tanto novos horizontes possíveis como novas agendas.
Tudo isto me leva a afirmar que estamos diante do desafio de gestar um potente bloco histórico das diversas cidadanias ativas organizadas, vibrante expressão política das resistências e lutas pela vida e direitos nos territórios e espaços públicos. Esta é a trincheira mais efetiva em qualquer resistência democrática. Preservar no imediato a democracia é reafirmar o seu valor em si como condição política institucional indispensável para construir o Brasil que desejamos. No entanto, um bloco histórico de cidadanias irresistível só se forjará como força coletiva com ambição transformadora se for muito além disto. Se for capaz de desencadear um processo constituinte e instituinte de longo alcance, tanto de combate a desigualdades e violações, como de novos e mais amplos direitos de cidadania. Estamos diante de demandas legítimas que se situam num outro nível, onde o poder político, suas instituições e as políticas públicas são resultado e não começo. É próprio da cidadania ativa sempre tensionar a institucionalidade existente e os privilégios que a contaminam, definidos como direitos legais em correlações de forças e pactos do passado. A grande diversidade das agendas e propostas de organizações e movimentos de cidadania vem do vivido e dos direitos não reconhecidos legalmente, do sentido no cotidiano como violação do direito a igualdade na diversidade, nos territórios em que vivemos e nos espaços que organizamos o nosso viver, sofridos como negação, exploração social, como discriminação, intolerância, dominação e violência, enfim desigualdade social, negadora prática de cidadania. Este caldo denso, impregnado de contradições de todo tipo, é a alma vital e a razão de existir de coletivos de cidadania em ação, expressando como relações e estruturas organizativas da vida em coletividade são percebidas e vividas por seus integrantes. Aí está o berço de qualquer democracia, como cultura vivida e alimentada, com capacidade de transformação.
No debate público dominante sobre a grave crise política em que estamos mergulhados, o foco tem sido as possibilidades de alianças pelo alto, sem dúvida uma questão importante, mas insuficiente para apontar novo rumo de sentido radicalmente democrático. Os vivos debates que se organizam e multiplicam neste momento sobre temas essenciais no seio da sociedade civil através das redes sociais de comunicação parecem ignorados no que tem de sinais de uma potente agenda cidadã emancipatória e libertadora. Não cabe no espaço desta crônica relacionar a enorme quantidade e diversidade de questões que são aí tratadas. Mas é forçoso reconhecer que estamos nos apropriando de tais ferramentas de comunicação no que tem de potencial para novos imaginários democráticos, transformando o isolamento físico em momento de trocas e em um novo modo de fazer política. A mobilização digital não substitui a democracia direta em grandes manifestações protagonizadas pela cidadania. No entanto, nos permite desenvolver debates aprofundados sobre a grande complexidade e exigências de uma agenda democrática ecossocial emergente entre as cidadanias do mundo. Continuando enraizados em nossos territórios locais de vida e ação concreta, mas cada vez mais amplamente articulados e planetários.
Chamo a atenção para estas questões porque elas apontam possibilidades novas, algo para além da resistência democrática que a conjuntura nos impõe para evitar o pior. Nada garante de antemão que seremos capazes de evitar o desastre que ronda no ar e menos ainda que poderemos revitalizar a democracia. Porém, há uma combinação de circunstâncias em meio disto tudo que nos levam a refletir e debater questões mais estruturantes e potentes para definir novos rumos e construir novos caminhos. Não voltaremos à normalidade de antes, pois estamos reavaliando modos de viver e organizar a vida coletiva, de algum modo transformados, e dispostos a tudo mudar. Lembro aqui a densidade e o sentido de movimento histórico de uma frase de Alberto Acosta como síntese do que também penso. Estamos diante do desafio e da possibilidade de “… novas formas de conjugar o verbo democracia” .
Rio, 10/07/2020