Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Pior que a crise econômica e política é a gente estar ziguezagueando num mar revolto, como o mundo se apresenta hoje. O Brasil não sabe mais onde está e para onde vai. Tentar ver algo por trás daquela luta livre no Congresso Nacional, sob comando de Cunha e Renan, e no Governo Dilma II, com Levy do “livre mercado” e ministérios loteados entre corporações partidárias totalmente deslegitimadas, é perder tempo. A gente também acaba tonto de tanto olhar para cá e para lá e, no fim, sem nada entender. Na verdade, se for pelo que acontece em Brasília, a política perdeu sentido. No entanto, o premente cotidiano nos lembra que a vida continua, apesar de tudo.
Como seria bom se nossos congressistas e governantes tivessem que ir ao supermercado e à feira para aquela compra de itens básicos que garantem a vida. Escolher produtos e desistir por causa do preço ou pegar quantidades que a caixa registradora mostra estarem acima do dinheiro disponível é uma situação pela qual todo mundo deveria passar. É doloroso ver e ouvir os comentários de donas de casa e velhinhos, como eu, sobre o orçamento que ficou curto. Mas a coisa não fica por aí. Imediatamente, todo papo na fila do caixa remete à crise que está no ar, ao Congresso, aos políticos, ao governo, às empreiteiras que sugaram a Petrobras. Sobra, muito por sinal, para governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores. O maltratado, sem merecer, é o bem comum da política, onde nossa vida coletiva deveria ser cuidada com carinho. Aliás, perde a cidadania e a democracia com este descrédito na política.
Caminhar com ouvidos atentos, tentando seguir a energia criativa que ainda circula por aí, é melhor que ler jornal, ouvir noticiário de TV, ficar conectado na internet ou no celular. Pensando bem, para a gente se informar minimamente do que se passa no país, o melhor é zapear pelos sítios alternativos da internet, onde algo que faz sentido é informado e, sobretudo, analisado. Mas é na rua e na praça, berço e esteio de qualquer democracia que se preza, onde “sinais” de humores, dissabores e pequenas ideias portadoras – verdadeiras sementes do possível amanhã – podem ser captadas. O cotidiano da rua no momento é de muita dureza, uma trincheira de muita resistência e de pouca certeza. A mobilidade urbana nas nossas metrópoles faz sofrer demais da conta a milhões de cidadãs e cidadãos. E os governantes, que viajam de helicóptero ou com pelotão de batedores quando de carro, parecem surdos aos clamores populares por melhor mobilidade. Podiam, ao menos, reduzir pela metade o tempo de transporte entre casa e trabalho, exprimidos como viajamos em ônibus, trens, barcas e metrôs que não dão conta. Que dizer da falta de segurança e da violência que mata e muito? Da saúde não garantida pela política pública? Da educação patinando e não conseguindo ensinar o necessário para nossas crianças, o nosso futuro, afinal?
Estamos numa pior, esta é a verdade. Há muita desconstrução e destruição no dia a dia. Não é só a lama das barragens da Samarco que destrói tudo ao longo do rio Doce. As diferentes “avalanches” nos ameaçam num cotidiano sofrido, a começar pelo desemprego, hoje já na escala de milhão. Nem dá para olhar muito o que se passa mundo afora, também mergulhado num mar revolto, ameaçado pela barbárie de extremismos de todo tipo. As conquistas democráticas de direitos de uma cidadania planetária apenas emergente nunca foram tão duramente ameaçadas. O pior cenário da globalização capitalista neoliberal parece ganhar terreno, com todo o seu arsenal destrutivo de direitos cidadãos e de sociedades. Fala-se em sustentabilidade cada vez mais, mas será sustentabilidade de toda esta destruição? Claramente, o que a política de ajuste que Levy está conduzindo entre nós, por exemplo, impondo uma crise econômica planejada ao país, só dá sustentabilidade a especuladores e bancos.
Como navegar no meio disto tudo? É de desistir de tentar ver e entender o que se passa em Brasília. Mais dia, menos dia, o mesmo se repete de forma trágica e cômica. Seguir a Lava-Jato? É como se dar uma pena adicional. Afinal, por trás de toda a corrupção – que parece a cada dia maior – está o ataque destrutivo ao maior patrimônio econômico comum que a sociedade brasileira construiu ao logno de gerações, a nossa Petrobras. Talvez a defesa das empresas públicas pode nos dar um sentido maior de resistência nas trincheiras que somos obrigados a construir no cotidiano.
Uma agenda maior que precisamos tematizar e construir é a própria questão democrática. Até algumas instituições, como MP, Polícia Federal e Judiciário, revelam certa autonomia republicana que nos pode deixar tranquilos. Mas só isto não basta! Democracia se faz com disputa e negociação permanente entre diferentes expressões de cidadania. Como fazer isto se a conformação de sujeitos coletivos da cidadania, os partidos, está totalmente contaminada por interesses corporativos e patrimonialistas menores? Ou, de outro modo, como desativar a grande bomba política que se formou nos blocos b+b+b, do boi, da bíblia e da bala? Será que eles tem algo de cidadania do Brasil real? Como chegamos a isto, que dá vida aos Cunhas e Renans que puseram a política no escanteio e botaram no primeiro plano interesses de “grupelhos” de um ponto de vista político?
Fico comparando o país real, do cotidiano e da rua de uma grande cidade, como o Rio de Janeiro, e a política institucional que temos. Concluo que nos faltam timoneiros e tripulação que segue as suas orientações. A institucionalidade democrática defendia pela Constituição de 1988 nos dá uma base democrática, mas não dá projeto de país e os timoneiros necessários. Cabe a nós, cidadania ativa, gerar e legitimar pelo exercício da participação cidadã, da rua, dos movimentos sociais, do tecido organizativo cidadão em redes e fóruns, dos partidos e do voto. Inspiro-me no meu guru político, o filósofo e político Antônio Grasmci, e afirmo categoricamente que nos falta direção política. Ela se conquista pela disputa de hegemonia. Nos falta a hegemonia legitimada e, pior, a própria disputa de hegemonia, de direções para o país num mundo convolucionado. Por isto, a crise sentida é maior do que a crise econômica e política noticiada. Ninguém quer crise, mas crises são parte da disputa numa sociedade democrática. O que falta, porém, é ver e sentir que existem imaginários mobilizadores da cidadania do país que pode apontar saídas para a crise. Estamos como que sem ideias diante da situação imediata vivida no país.
Como voltar a construir e disputar rumos para o país? Ou, de forma mais clara e radical, como resgatar a própria política para construir e disputar rumos democráticos ao nosso país, que contribuam a um Brasil melhor e um mundo melhor? Por onde começar para transformar nossas resistências do cotidiano e dos movimentos sociais que pipocam pelo país em uma força de cidadania renovada, transformadora, irresistível? Deixemos Brasília de lado e busquemos inspiração no cotidiano, à nossa volta. Voltemos à base, pois aí poderemos encontrar, com muita probabilidade, aquela energia criativa inspiradora.