Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
O drama vivido por milhões de migrantes por causa da miséria, das intolerâncias e guerras é revelador da barbárie do mundo globalizado em que vivemos. A globalização prospera pela medida de negócios e pela acumulação de riquezas nas mãos dos poucos vencedores. A economia e o poder estatal estão organizados hoje ao serviço das grandes corporações econômicas e financeira, não para gente e a sustentabilidade das condições de vida. É uma civilização humana que nega os princípios éticos de direitos iguais e de convivência e compartilhamento entre todos os seres humanos dos bens e serviços que o planeta comum nos permite gerar.
Pode existir algo mais dramático do que tentar atravessar o Mediterrâneo num pequeno barco de pescadores, mulheres, crianças e homens apinhados como carga qualquer, sem nenhuma proteção contra ventos, sol e chuva, arriscando o fatal naufrágio – e eles são cada vez mais numerosos -, sabendo que do outro lado do muro de água, a Europa, ninguém os quer por lá? E ainda há a ameaça de bombardear os barcos. Tudo em nome de um mundo que prega e se alimenta do livre mercado, da total desregulação, da abertura comercial e financeira… para o capital, é claro!
Essas mulheres, crianças e homens são apenas os párias banidos descendentes que escaparam ao tráfico negreiro e à escravidão de alguns séculos atrás, levados à força para as plantações do Brasil e nas Américas. São os descentes dos que foram invadidos pela colonização imperialista europeia. São os filhos e filhas das promessas da globalização recente e do novo assalto aos recursos naturais de seus territórios. Muitos, inclusive, sofrem diretamente as guerras internas de intolerância e de falta de perspectivas, guerras que alimentam o fabuloso negócio de armas da globalização. São gente como a gente, sem direito de viver onde nasceu ou de buscar melhores condições de vida lá onde foram parar os recursos roubados de seus territórios.
A migração na Europa tem invadido os noticiários pelo aumento de acidentes trágicos no Mediterrâneo e pelo drama humano dos sobreviventes. Mas este fluxo tem uma história de tragédias, exclusões e intolerâncias que vem de algumas décadas. Dá para dizer que o Mediterrâneo é a muralha que a União Europeia militarizou para se proteger da migração vinda da África. Como muitos acabam transpondo a muralha, com aquela determinação e coragem de quem se arrisca a tudo, se internalizaram na Europa verdadeiros guetos de banidos. Racismo e intolerância religiosa mantêm os guetos excluídos, como as explosões de jovens das periferias de Paris e Londres tem mostrado.
Mas o fenômeno das correntes migratórias de miseráveis, de expulsos por guerras e pela intolerância virou global no contexto da globalização ao gosto dos negócios que o intensifica. Talvez tão grande ou maior seja a corrente da América Central, Caribe e América do Sul em direção aos EUA e, em parte, Canadá. Na fronteira EUA-México a muralha é de concreto mesmo, por centenas de quilômetros. As travessias não são por barcos, mas guiadas por terra por “coiotes”, verdadeiros traficantes de gente. Haja dramas, mortes, prisões e deportações. Apesar de tudo, os “latinos” estão alterando até o equilíbrio demográfico e da geografia de votos na realidade dos EUA, obrigando o país a enfrentar permanentemente a agenda da legalização da migração. Só que o país nasceu racista e do racismo não se livrou até hoje.
Nós, brasileiros, nos consideramos por fora disto. No entanto, só de bolivianos, ao seu modo banidos e sujeitos a trabalho escravo, sobretudo em São Paulo, devemos ter uns 300 mil. Tivemos algum destaque nas notícias aos haitianos que entraram pelo Acre, com um tratamento ao menos de respeito. Mas estamos recebendo cada vez mais africanos, agora como migrantes em busca de oportunidades. Nossa legislação é restritiva. Precisamos avançar muito e de forma urgente, para que não sejamos mais um país “emergente” que se apropria e imita as regras e políticas de exclusão dos países desenvolvidos. A vista grossa na questão dos bolivianos é um sinal de alerta.
O fato é que a migração e os milhões de banidos pela globalização estão em todo lugar. O drama de bolivianos até é mais grave na Argentina do que no Brasil. A gente viu a violência contra os banidos migrantes de Moçambique e outros países na África do Sul. Na semana que passou, jornais noticiaram o drama dos migrantes rohingyas, minoria muçulmana em Mianmar e Bangladesh, que fogem em barcos por causa da perseguição e intolerância em direção à Indonésia e Malásia.
Enfim, a migração é um dos lados mais bárbaros da globalização de um ponto de vista humano. Nada como lembrar aqui algo já nas regras de convivência mundial. Todo ser humano nasce com iguais direitos, como nos diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, numa interpretação livre. Mas a globalização, com todas as etapas anteriores do capitalismo, desde o mercantilismo e a colonização, é essencialmente de exploração, miséria e exclusão para acumular. Lei da selva do mais forte, dos piratas aos donos do “cassino global” de hoje. Para manter tal sistema, nada como um planeta colonizado, dividido e organizado de forma a favorecer a acumulação de riquezas. Gente só serve na medida da acumulação. Somos um lixo descartável como as montanhas de lixo geradas pelo capitalismo, que submete e destrói natureza e gente ao seu afã de acumular sem limites.
Diante deste quadro, tenho pensado muito no meu avô Jan Grzybowski, nascido em Slupia, a uns 130 km de Varsóvia, no Leste da Polônia. Ele também migrou no final do século XIX, um período mais favorável para migrações, em que o tal “novo mundo” precisava desesperadamente de gente, como os EUA, Argentina, Brasil, Austrália. Meu avô foi trazido pelos seus pais num barco partido de Gdansk, na Alemanha, em viagem subsidiada pelo governo brasileiro. Na época, os grandes fazendeiros brasileiros buscavam mão de obra para substituir escravos negros nas plantações vir ao Brasil e o governo ajudava aqueles que não tinham recursos para pagar sua viagem para lugar melhor. Foram angariar gente, como se angaria possibilidades de lucros, na periferia pobre da Europa de então: Itália, Alemanha, Polônia e todo Leste Europeu.
A diferença entre as migrações de hoje e aquelas de meados do século XIX até a Primeira Guerra Mundial foi a acolhida um tanto mais generosa. Meu avô, apesar da imensa saudade de sua terra natal, era muito agradecido por poder comer todos os dias no Brasil de então. Minha família ganhou um lote de 25 hectares na colonização das florestas do Rio Grande do Sul, com ajuda do governo estadual por dois anos, até ter seu próprio milho e trigo. Isto foi o paraíso de meu avô! Creio que este ainda é o sonho dos migrantes de hoje.