Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
A radicalidade do governo Temer no desmonte das garantias e regulações legais que vínhamos conquistando parece não ter limites. E o subserviente Congresso Nacional nem está aí. Estamos retrocedendo décadas, se não séculos. Um dos pilares essenciais para nosso futuro como povo brasileiro e da humanidade inteira, dada a interdependência planetária, é a integridade do grande patrimônio natural que nos cabe cuidar. Por diferentes artifícios, quase na calada da noite – as MPs sobre propriedade de terras, por exemplo, foram editadas na véspera do Natal de 2016 –, está sendo desmontado todo o frágil arcabouço institucional de proteção de territórios e povos que vivem exatamente da preservação da sua integridade ecológica e social: povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pescadores, seringueiros e demais catadores de produtos da floresta. Pior ainda, a sanha dos golpistas no Planalto visa privatizar tudo o que foi tornado comum ao longo de décadas: petróleo e produção de energia elétrica, abastecimento de águas e tratamento de esgotos, exploração mineral, até parques e equipamentos comuns urbanos.
Estamos, literalmente, sangrando. Lembrando o uruguaio Eduardo Galeano, as nossas veias foram reabertas para servir à ganância de acumulação de lucros de uma globalização capitalista, comandada pelas grandes corporações econômicas e financeiras, que tudo quer privatizar e mercantilizar para saciar o seu apetite. O patrimônio comum do Brasil está sendo oferecido pelo melhor preço, com total desdém pelo que significam como bens comuns essenciais para nosso bem estar e identidade como povo, além de essenciais para a sustentabilidade do próprio Planeta Terra. Por sinal, não tenho lembrança de nenhuma declaração do governo golpista sobre a incontornável questão da mudança climática, que torna a humanidade inteira solidária no desastre, independente se somos ricos ou pobres, desenvolvidos ou subdesenvolvidos, se estamos no Norte ou no Sul, no Leste ou Oeste. Os louváveis ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável), no meu modo de ver ainda inconsistentes e frágeis, nem merecem consideração do governo que temos.
Estamos diante de um governo brasileiro que pratica uma política ativa de subserviência do capital global ou, de uma maneira mais clara e precisa, uma política para facilitar a recolonização do Brasil. A busca da “Ordem e Progresso” – lema do governo Temer – é a velha ordem da velhíssima República, aquela que mudou para nada mudar, mantendo a economia voltada para fora, todas as mazelas da escravidão e do racismo, o machismo patriarcal, o patrimonialismo dos privilégios considerados direitos e as estruturais desigualdades sociais. Nada mais, nada menos, que sinais do “progresso colonial”, aquele da manutenção do extrativismo mais rápido e amplo dos recursos naturais em benefício de mercadores. Com Temer, o nosso querido Brasil parece andar para trás a passos largos e voltar a ser apenas uma commodity, o Pau-brasil. Ou alguém vê outro sentido no tudo que está se fazendo: entrega das reservas de petróleo do pré-sal, liberação das amarras legais quanto à posse de terras por estrangeiros, revisão de leis e normas de reconhecimento de Territórios Indígenas e Quilombolas, licença para grilar terras e desmatar, matando quem as ocupam se preciso for, redução de áreas protegidas ou, mesmo anulação – como no caso da RENCA e da reservas nas margens do Tapajós – para mineração, agronegócio ou obras de infraestrutura que tais atividades exigem. Tem mais, pois está em curso um gigantesco programa de privatização do que foi tornado comum ao longo de nossa tumultuada história: a produção de energia (Eletrobrás), os aeroportos e portos, as rodovias, os sistemas de água e esgoto, até parques e equipamentos públicos próprios de nossa identidade, como estádios de futebol e locais de grandes manifestações culturais. E ainda o financiamento público como o do BNDES agora se destina prioritariamente para privatizar os comuns. A gente pensava que já tinha superado isto!
O incrível é que a cidadania brasileira esteve à frente do Fórum Social Mundial, numa iniciativa de fortalecer movimentos de cidadania planetária contra a globalização neoliberal que tudo quer dominar pelo livre mercado. O que aconteceu com a gente? Por que estamos tão fracos diante do que se passa em nossa casa comum, o Brasil? Agora, de dentro do nossa sociedade, ressurge, através de um golpe bem arquitetado, a mais descarada submissão ao livre mercado, tudo em nome da volta do crescimento de um desenvolvimento capitalista selvagem. Crescimento do que? Para quem? Evidentemente, não é para uma civilização planetária que integra a humanidade inteira em sua fantástica diversidade de povos e culturas, de bem com o Planeta Terra, nosso bioma comum. O abrir-se generosamente ao mundo da cidadania brasileira, como imaginado no FSM, é o oposto de nossas elites dominantes que querem ser sócias do 1% que dominam a globalização que, para eles, nada mais é do que povos e territórios a serem explorado livremente.
A questão política maior por trás de tudo isto é que a privatização dos comuns tem como pressuposto a privatização do comum política, da esfera pública da democracia e do poder estatal, do executivo, do parlamentar e do judiciário. Estamos diante de um tsunami político gigantesco. Sair desta sempre é possível, mas é preciso ter muita fé, ousadia e determinação. Esconder-se e esperar não é a melhor estratégia. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer, como nos lembra uma canção de Geraldo Vandré, nosso hino da frágil democratização nova de apenas 30 anos. Sonhar com o impossível para torná-lo possível é desde aqui e agora. Temos que redescobrir em nós mesmos a energia necessária para, além de resistir, avançar novamente determinados para mudar tudo isto.
Rio, 04/09/17