Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
O dia 22 de março é o Dia Mundial da Água. Quando, porque e por quem foi definido tal dia não tenho ideia. Sem dúvida, a água merece ser celebrada e reverenciada. Sem ela não é possível a vida, de nenhuma forma. Aproximadamente 70% da superfície terrestre estão cobertos por água de mares, lagos e rios. No entanto, a água sofre monumentais agressões humanas no seu ciclo ecológico de permanente renovação, fundamental para a vida. E hoje, com a mudança climática em curso, o sistema ecológico da água já apresenta alarmantes sinais de alteração profunda, capaz de afetar radicalmente os habitats humanos e das espécies vegetais e animais.
Na semana que passou, foi realizado, em Brasília, o Fórum Mundial da Água, evento que ocorre a cada três anos. Dele participaram representantes de organismos multilaterais, governos e políticos, grandes empresas envolvidas no negócio da água, acadêmicos, grande mídia e algumas organizações não governamentais. Em paralelo, foi organizado o FAMA – Fórum Alternativo Mundial da Água, protagonizado por movimentos sociais e organizações civis engajados na luta pela água, na sua defesa e promoção como bem comum planetário. Apesar da importância do tema e dos fóruns, a água como bem comum ameaçado não teve o destaque merecido nos debates públicos entre nós na semana que passou.
Talvez a maior ameaça à água como bem comum seja a sanha privatizante e mercantilizante do capitalismo globalizado. A água é um grande negócio, mais do que a gente imagina. No mundo todo, há uma disputa de empresas pela gestão dos sistemas de captação, tratamento e abastecimento de água, particularmente nas grandes metrópoles. Os sistemas de abastecimento são algo fundamental, indispensável, mas muito complexos. Trata-se de serviço público essencial ou apenas mais um negócio? Eis a questão. Formaram-se grandes corporações capitalistas globais para negociar a água, base da vida, como mercadoria em busca de lucros e acumulação. Tal disputa não está resolvida, porém. Em muitas metrópoles mundiais, após desastrosas privatizações, a cidadania ativa conseguiu impor uma reversão, voltando a tratar a água com um bem comum a ser gerido por órgãos públicos. São notórios os exemplos recentes de Paris e Berlim, mas já beiram a uma centena as cidades com abastecimento de água desprivatizado. Na Itália foi realizado um Plebiscito sobre a água e venceu por larga margem o voto para ser tratada como um bem público comum, em todo o país, contra o truculento Berlusconi e suas propostas de tudo privatizar.
Na agenda privatizante do governo Temer, as empresas públicas brasileiras de água e saneamento, como a CEDAE no Rio, não passam de ativos valiosos a vender para resolver os problemas fiscais do Estado. De qualquer ponto de vista, um absurdo. Já falta água nas periferias de nossas cidades. Alguém acredita que será um bom negócio abastecer com a mercadoria água quem já é pobre, segregado e excluído, vivendo nas periferias? Negócios supõem compradores capazes de pagar o produto oferecido. E para pagar é preciso renda. Segundo os dados do IBGE, somando desempregados, subempregados e “desalentados” – os sem renda ou com pouca renda e em idade de trabalhar – eram mais de 40 milhões no último quadrimestre de 2017.
Uma presença importante no Fórum Mundial da Água foi das maiores empresas do negócio da água, como as globais Coca-Cola e Nestlé entre tantas outras de porte parecido. Vazaram notícias de que no Fórum Econômico Mundial, em Davos, em fins de janeiro de 2018, o presidente Temer se encontrou com tais empresas para discutir sobre seus interesses no Brasil e seu lugar no Fórum Mundial da Água que acabou de se realizar. Só essas duas empresas gigantes já controlam algo em torno de 15 a 20% do mercado de água de fontes minerais, engarrafada e vendida no Brasil. Aliás, seria fundamental que o nosso IBGE produzisse um mapa de quem é quem no controle das principais fontes de águas minerais, todas na volta dos grandes aqüíferos, em particular o Guarani, um dos maiores do mundo. Também seria bom saber qual o montante dos negócios e o lucro que gera para as empresas a nossa sede por água, especialmente em nossas cidades sem bicas públicas para a gente beber. Além disto, quanta água se gasta para produzir um litro de Coca-Cola, por exemplo? Dois a três litros de água para um litro do engarrafado, com adição de sua misteriosa mistura com grande quantidade de açúcar. Não que guaraná seja melhor, mas ao menos é o guaraná estimulante da planta amazônica.
No tal capitalismo verde sempre se fala que será possível resolver o problema estratégico da água com tecnologia. Hoje já existe e é usada a tecnologia de dessalinização de água dos oceanos. Uma alternativa, sem dúvida, mas de negócio, concebido para produzir lucros antes e acima de atender necessidades humanas em escala planetária. Trata-se de arma de guerra geopolítica pelos recursos naturais do Planeta. Afinal, a água é um recurso estratégico.
Porém, os mares e oceanos já estão profundamente comprometidos pela civilização industrial, produtivista e consumista do capitalismo predador e excludente. A integridade do ciclo ecológico da água depende muito dos oceanos, sua saúde e capacidade de evaporação. Ela já foi afetada pela acidificação, poluição, pesca predatória e extinção de corais e manguezais, entre tantos outros males. Junta-se a isto tudo o fenômeno da elevação do nível das águas de mares pelo derretimento das grandes geleiras da Groelândia e calotas polares, que estão no centro da questão das mudanças climáticas. Estamos diante do comprometimento da própria integridade do Planeta Terra, nosso bem comum maior e único. Por exemplo, o The Guardian publicou na semana passada um artigo alertando sobre a gigantesca ameaça da poluição dos oceanos pelas micropartículas de plástico, bem mais do que 5 bilhões de toneladas até aqui estimadas. Afinal, comer produtos do mar é ingerir e por em nosso próprio sangue micropartículas de plástico! Isto não se resolve com mais tecnologia movida pela busca de lucro. Mudança fundamental só pode vir com mudança de paradigma na nossa relação com a água e com os sistemas ecológicos naturais, recuperando a sua resiliência.
No meu intento de apontar algumas pistas de reflexão sobre a grande questão da água, bem comum planetário, trago aqui alguns dados divulgados pelo IBGE na semana que passou, sob o título de Contas econômicas ambientais da água: Brasil 2013-2015 – CEAA. Estudo muito importante, apesar de seu viés demasiado economicista, ignorando o caráter de bem comum acima do valor de mercado. Nas próprias palavras do IBGE, a água é “… um componente-chave do desenvolvimento econômico…”. Assim, considerando a variedade de funções e usos dos recursos hídricos – integridade dos ecossistemas, consumo humano, produção de alimentos, geração de energia elétrica, insumo de processos produtivos, local de descarte e diluição de esgotos – a retirada de água total pela economia, em 2015, foi de 30,2 bilhões de m³, sendo consumidos 6 litros de água para cada R$ 1,00 de Valor Adicionado Bruto, com grande diversidade entre setores econômicos: 91,58 litros/R$ na agropecuária, 3,72 litros/R$ nas indústrias de transformação e construção, 2,54 litros/R$ nas indústrias extrativas. O consumo humano foi avaliado em 108,4/litros dia per capita.
O que os dados do IBGE escondem de ameaças destrutivas à integridade do sistema ecológico da água, mesmo considerando que temos algo em torno a 13% da água doce do planeta, ainda precisa de muita pesquisa e análise. Aliás, nem está no escopo do instituto de estatística pública, ou mesmo de Agências como a Ana e do Ministério do Meio Ambiente, ver a água e diagnosticar o estado dela como bem comum que cabe ao Brasil gerir de forma responsável. Isto é tema prioritário só de certas iniciativas no seio da sociedade civil. Basta lembrar aqui de lutas emblemáticas entre nós. Temos aquela luta diária pela água essencial ao viver que, pelas estimativas que faço, é um problema para 20% ou 30% da população brasileira. Convivemos com um direito fundamental violado e agimos como se não fosse um problema nosso, de cidadania. Quantos sabem e se preocupam com a heroica luta do povo nordestino pela água? Quantos já ouviram falar da ASA – Articulação do Semi-Árido e seu exemplar projeto de cisternas construídas em mutirão para captação e uso de água das chuvas irregulares do Nordeste rural e saber conviver com a seca? E as lutas do MAB – Movimento dos Atingidos pelas Barragens, são conhecidas e valorizadas? O MAB confronta a prioridade do uso das águas dos rios por grandes hidrelétricas e indústrias extrativistas, propondo alternativas que garantam os direitos ao bem comum água de ribeirinhos, pescadores, indígenas e agricultores familiares. Existem movimentos resistindo contra os “desertos verdes” de florestas homogêneas, especialmente de eucaliptos, sugadores de água e destruidores de biodiversidade. Uma grande frente de resistência social enfrenta o agronegócio em diferentes Estados do Brasil, contra a acaparação de terras e água, com desmatamentos criminosos que secam fontes e riachos, com poluição por agrotóxicos e, crescentemente, pela irrigação de lavouras que secam rios essenciais para o abastecimento de água de povos e cidades no seu percurso. Será que precisam acontecer desastres como o da barragem de rejeitos da Samarco, em Minas Gerais, destruindo e contaminando todo o vale do Rio Doce, ou da Hydro Alumínio, no Pará, para termos idéia da dimensão das ameaças às nossas águas?
No dia 14, em Salvador, participei de uma atividade no Fórum Social Mundial, em Salvador (BA), sobre camponeses e água, ameaçados em seus modos de vida pela expansão de agronegócios e mineração. Foram apresentados casos da Índia, Moçambique e Brasil. É incrível como o mundo poderia ser desenhado pela geopolítica da água. Sempre lembro que, no fundo, a emblemática guerra não resolvida entre Palestina e Israel tem no centro o território e, nele, a água. Por sinal, o até sagrado Rio Jordão chega seco na Faixa de Gaza, na costa Sudeste do Mediterrâneo, dado o intenso uso de sua água pelo agronegócio israelense. Não tem tecnologia de dessalinização capaz de recuperar a sustentabilidade e centralidade do deste rio para a cultura e vida dos povos em seu entorno.
Termino esta minha angustiada crônica sobre a essencial água no cotidiano deste atribulado mundo de hoje lembrando alguns alertas dramáticos de uma reportagem de Neeta Lal, do IPS – Inter Press Service, sob o título Water Scarcity: India´s Silent Crisis (numa tradução livre, “Escassez de água: silenciosa crise da Índia”). A reportagem começa lembrando que o dia 15 de julho de 2018 marcará a “hora zero” para que a Cidade do Cabo, na África do Sul, tenha seus 3,78 milhões de habitantes forçados a passar a viver com uma quota de 25 litros de água por dia. Depois explica porque em 2040 não haverá praticamente água potável em quase toda Índia. Algo que hoje já é um grande problema para quase metade dos 640 distritos em que se organiza a Índia com seus 1,3 bilhões de habitantes. São 18% da população mundial, mas compartem somente 4% da água útil do mundo. Lá, a cada dia morrem em torno de 500 crianças devido a doenças decorrentes de água. Tão dramática situação tem a ver com a expansão do agronegócio e do uso intenso de água pelas termoelétricas, fonte principal de energia da Índia. Mas também foi neste país que começaram as maiores lutas contra a ameaça da água como bem comum. Por sinal, quanta gente se pergunta, entre nós, sobre como o desmatamento da Amazônia afeta as montanhas geladas da Cordilheira do Himalaia, fundamental para o regime de água na Ásia, e dos sagrados rios, como o Ganges, na Índia?
Desde o começo do século, em 2001, em Porto Alegre, quando iniciamos o Fórum Social Mundial, as lutas pela água tomaram um lugar de destaque nos debates, trazidas por participantes da Índia, Itália, Cochabamba, entre outros. Tais lutas se revelaram com potencial de nos unir em termos planetários a partir das diversidades e autonomias que tais lutas carregam, sempre territoriais. As águas, as fontes, os córregos e os rios são constitutivos dos territórios de cidadania onde vivemos. Juntemos forças e vozes na defesa e preservação da água como bem comum e direito fundamental para todos os povos! Tarefa urgente, que pode contribuir muito para evitar mudança climática desastrosa.
Rio, 26/03/18