Por Bia Cardoso
Blogueiras Feministas
Recentemente, a Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal realizou a terceira audiência pública interativa para discutir a Sugestão Legislativa nº 15 de 2014, que pretende “regular a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação, pelo SUS – Sistema Único de Saúde”. A sugestão, foi uma iniciativa realizada por meio do Portal e-Cidadania, que com 20 mil apoios obrigou a retomada da discussão da regulamentação do aborto no legislativo federal.
Jarid Arraes (A experiência de uma audiência sobre aborto no senado), Lola Aronovich (Percepções minhas sobre audiência no Senado sobre aborto), Maíra Kubik (Um duelo sobre aborto no Senado) e Marcia Tiburi (O Círculo Cínico e as Falácias sobre a Legalização do Aborto) relataram como foi a audiência. A percepção geral é que o debate esta cada vez mais engessado com a polarização que vem marcando as discussões politicas no país. Entretanto, nesse caso temos mais problemas, pois diversos argumentos contrários ao aborto são religiosos e não há o menor respeito pela laicidade do Estado, muito menos pelos direitos violados das mulheres.
Semana passada, o Estatuto da Família foi aprovado na Comissão Especial da Câmara Federal. A proposta pretende definir na lei o que é família, impactando a vida de inúmeras pessoas que não estão inseridas nas conjunturas papai + mamãe + filhinhos. Mesmo sabendo que há grandes chances do Superior Tribunal Federal (STF) considerar essa lei inconstitucional, essa vitória do movimento conservador no Congresso é simbólica, legitimando a violência e exclusão social. Entretanto, a descriminalização e legalização do aborto tem encontrado muito mais barreiras e menos apoio da sociedade.
Durante o mês de setembro, aconteceram discussões na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados sobre o PL 5069/2013, que torna crime o anúncio de métodos abortivos e a prestação de auxílio ao aborto, especialmente por parte de profissionais de saúde. O projeto de lei é de autoria do atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Na justificativa, ha alegações do tipo: “A legalização do aborto vem sendo imposta a todo o mundo por organizações internacionais inspiradas por uma ideologia neo-maltusiana de controle populacional, e financiadas por fundações norte-americanas ligadas a interesses super-capitalistas (…) as grandes fundações enganaram também as feministas, que se prestaram a esse jogo sujo pensando que aquelas entidades estavam realmente preocupadas com a condição da mulher”.
O PL 5069/2013 impacta diretamente o atendimento as vitimas de violência sexual. No texto do relator Evandro Gussi (PV-SP), o projeto sugere que apenas seja considerada violência sexual práticas que resultam em danos físicos e psicológicos e que a prova da deverá ser realizada por exame de corpo de delito. Além disso, no voto favorável, afirma que “concordamos com o que pretende o autor da Proposição, que busca propiciar maior efetividade aos dispositivos já vigentes em nossa legislação pelo afastamento da prática do aborto, em consonância com a opinião da ampla maioria do nosso povo”. A proposta dificulta o acesso ao aborto já legalizado e o atendimento regulamentado pela Lei 12.845/2013, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual.
A proposta foi retirada da pauta da CCJ na ultima semana, mas deve voltar a ser discutida emaudiência pública no dia 1º de outubro. A deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ) frisou que o projeto penaliza os profissionais de saúde e faz com que mulheres que passaram por uma violência sejam ainda mais violadas. “Essa proposta afasta as mulheres do atendimento, onde elas podem receber apoio psicológico, informações, coquetéis contra doenças sexualmente transmissíveis, e a pílula do dia seguinte, inclusive para não terem de fazer um aborto”, disse.
Porém, esse não é o único projeto que pretende dificultar o acesso ao aborto legal. Eduardo Cunha também é autor do PL 1545/2011 que prevê pena de 6 a 20 anos para médico que realiza aborto, além da cassação do registro profissional. Atualmente, a pena pode ser de 3 anos, só em caso de morte a prisão máxima é de 20 anos. O PL 7443/2006 que transforma o aborto em crime hediondo. E o PL 6033/13 que revoga a Lei 12.845/2013.
Inúmeros deputados também tem apresentado propostas que criminalizam ainda mais o aborto. Estão arquivados o PL 5364/2005 que pretende eliminar no Código Penal a exceção feita aos casos de gravidez resultante de estupro; e o PL 7235/2002 que propõe revogar todo o art. 128 do referido Código, o que teria o efeito de criminalizar o aborto terapêutico, realizado para preservar a vida da gestante. O PL 1035/1991 e o PL 2423/1989, tipificam e criminalizam o aborto como crime de tortura. O PL 5166/2005 de Hidekazu Takayama (PSC-PR) determina como crime a antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável.
Não apenas o aborto legal está em risco, como também medidas profiláticas e de acesso a métodos contraceptivos. O PL 1413/2007 de Luiz Bassuma (PEN-BA) proíbe a distribuição, a recomendação pelo SUS e a comercialização pelas farmácias da pílula do dia seguinte. O mesmo deputado é autor do famigerado Estatuto do Nascituro (PL 478/2007), que proíbe o aborto mesmo em caso de estupro e transforma o aborto ilegal em crime hediondo.
Ao Estatuto do Nascituro estao apensados projetos de lei que: preveem pena de detenção de um a três anos para quem realizar pesquisa com célula-tronco (PL 489/2007); concede pensão à mãe que mantenha a criança nascida de gravidez decorrente de estupro (PL 3748/2008), que ficou popularmente conhecido como “bolsa-estupro”. Além de aumentar as penas para prática de aborto, incluem o aborto como crime hediondo e estabelecem penas para quem: “causar culposamente a morte de nascituro”; “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto”; “fazer publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, ou incitar publicamente a sua prática”; “induzir mulher grávida a praticar aborto ou oferecer-lhe ocasião para que o pratique”.
Entre os projetos que reduzem as restrições atuais ao aborto, a maioria trata de enfermidades congênitas graves que inviabilizam uma vida normal (PL 1174/1991 e apensos). Há apenas três projetos que visam liberar a prática do aborto. O PL 1135/1991 que propõe suprimir o art. 124 do Código Penal, com o efeito pretendido de descriminalizar o aborto. O PL 176/1995 que pretende não apenas a legalização do aborto sem restrições (exceto a idade gestacional “até 90 dias”), mas também que a rede hospitalar pública e conveniada seja obrigada a proceder ao aborto mediante simples manifestação de vontade da interessada. Em 2014, foi apresentado pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) o PL 7633/2014 que dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal e prevê o atendimento de pacientes que abortam na rede de saúde pública.
Há uma ofensiva contra o aborto no Congresso Federal. Atualmente, o movimento feminista trabalha mais lutando para não perder direitos conquistados do que fazendo novas propostas. E sabemos que não adianta apenas eleger mais mulheres no Congresso, pois se elas são conservadoras, projetos de descriminalização e legalização do aborto continuarão sendo barrados. Precisamos nos organizar, fazer barulho e continuar na luta. Envie mensagens aos deputados e senadores por email ou via redes sociais. Deixe mensagens na ouvidoria da Câmara e do Senado. Assine petições, como a que pede a rejeição do PL 5069/2013. Compartilhe informações e se puder participe de audiências publicas. Precisamos de mais e mais pessoas na luta.
Em entrevista ao jornal O Globo, a ativista e professora nicaraguense María Teresa Blandón falou sobre a realidade de seu pais, onde o aborto é totalmente criminalizado, nao sendo permitido nem mesmo a interrupcao da gestacao em situação de risco para a gestante. Sua fala nos mostra onde podemos chegar com uma ofensiva conservadora contra os direitos das mulheres:
Hoje, três países da América latina proíbem o aborto em qualquer circunstância: Nicarágua, Honduras e El Salvador. Você pode descrever o que as mulheres nessa situação passam na Nicarágua?
Até 2006, o que a lei exigia era que três profissionais de medicina concordassem que era necessário interromper a gravidez. A partir do final de 2006, em meio a uma campanha eleitoral muito polarizada, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, partido atualmente no governo, promoveu a proibição absoluta do aborto, em conjunto com a hierarquia da Igreja católica e alguns líderes de igrejas evangélicas. Depois de quase 140 anos, o governo nicaraguense mudou a legislação para criminalizar de maneira absoluta o aborto terapêutico. Isso teve consequências muito negativas para as mulheres, particularmente para aquelas que vivem em condição de pobreza, porque elas têm que recorrer a hospitais públicos. Nos casos mais críticos, muitas morreram porque enfrentaram riscos desnecessários. As mulheres passam a ver a gravidez como fonte de perigo, e não como fonte de felicidade. Calcula-se que, nos últimos três anos, 30 mil mulheres poderiam ter se salvado se o país tivesse aplicado o aborto terapêutico da forma correta. A Nicarágua tem 7 milhões de pessoas, então o número é alto. É o país com a maior taxa de gravidez na adolescência da América Latina e tem também uma alta taxa de mortalidade materna. Uma gravidez na adolescência tem quatro vezes mais risco de ter complicações do que numa mulher adulta. Além disso, os serviços de saúde lá são muito limitados. Nem sabemos quantas mulheres morrem antes mesmo de chegar aos hospitais.
Como você avalia a discussão sobre aborto em toda a América Latina hoje?
Eu diria que temos conseguido avanços que são importantes, mas ainda não são suficientes. Há avanços legislativos que nem sempre se traduzem em uma melhora de qualidade do serviço. Há países como Costa Rica e Guatemala, que têm uma legislação apropriada, mas os serviços de saúde não o são. Outros como o México, têm um serviço de saúde desigual: o Distrito Federal realiza aborto legalmente, mas algumas áreas mais distantes restringem muito isso, então as mulheres são obrigadas a viajar até a capital se quiserem realizar a interrupção. Agora, há um avanço significativo no caso do Chile, que antes era como a Nicarágua: nada permitia. O Chile está em processo de mudança de legislação, para permitir a interrupção em alguns casos. Já é um início. Mas continuamos a ter o Paraguai, por exemplo, onde recentemente uma menina de 11 anos que engravidou por estupro foi obrigada a seguir com a gestação, porque o Ministério de Saúde de lá decidiu que a vida da menina não corria perigo, embora já saibamos que não é verdade. E, em geral, os serviços de saúde são profundamente deficientes e fragmentados. Muitos médicos alegam que sua religião não permite que eles interrompam a gravidez de uma mulher que está correndo risco de vida ou que chega ao hospital em processo de aborto induzido.
Para você, o Brasil está correndo o risco de retroceder?
No Brasil, setores muito conservadores interferem nas políticas públicas e nos poderes do Estado, e acredito que este é parte do problema. Algumas pessoas que têm poder estão no Legislativo, mas também têm influência no Executivo e têm como uma de suas prioridades a criminalização do aborto. O Brasil corre um perigo latente de retroceder, perder direitos já reconhecidos, o que seria lamentável. Isso apenas incrementaria o número de mortes maternas por aborto de risco e aborto clandestino. Eu creio que um problema geral é que os partidos políticos não reconhecem o impacto que a penalização do aborto tem na vida das mulheres e na dinâmica familiar. Muitos dizem querer reduzir a mortalidade materna, mas continuam criminalizando o aborto em alguns níveis. Assim, é impossível alcançar as metas de redução de morte materna. Por isso, nenhum país da América Latina conseguiu ainda alcançar as metas do Milênio sobre esse assunto. Está claro que a esse tipo de legisladores não importam a vida das mulheres pobres e não importam os riscos que elas correm em consequência de uma gravidez não desejada, por fatores distintos. O conservadorismo cresce frente ao enfraquecimento do Estado. É uma espécie de escape. Quando não há um Estado forte, que cuida de seus cidadãos, as pessoas buscam outros refúgios. Por isso, cresce a participação de fundamentalistas religiosos. Há uma proliferação do pensamento mágico, do pensamento subordinado, que só é possível quando o Estado não promove a educação, não promove valores laicos, não promove uma cultura de direitos. Esses fanáticos se proliferam mesmo dentro do Poder Legislativo, Executivo.