Rio de Janeiro, 27 de abril de 2015
Por Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Ibase
A notícia do terremoto no Nepal, com impressionante número de mortes e muita destruição, despertou em mim muitas lembranças e uma enorme vontade de ajudar aquele povo, sem saber como. Estive lá entre 25/09 e 06/10/08 para participar de uma reunião do Bord da Action Aid Internacional (fui membro durante 8 anos) e para reuniões com membros da Assembleia Constituinte do Nepal, lideranças da sociedade civil e destacadas figuras públicas, especialmente da mídia local. Entre as reuniões o pessoal da AAI organizou uma bela caminhada de 90 km por trilhas nas montanhas da Cordilheira do Himalaya, partindo de e voltando a Pokhara, no que é considerado um pequeno percurso de cinco dias. Toda esta área foi atingida pelo terremoto.
Começo lembrando o momento do próprio Nepal. A monarquia autoritária havia sido derrubada em maio de 2006 e instituída a República. Havia um governo civil de coalizão sob liderança maoista – eles conduziram uma longa guerra de guerrilha contra o regime e venceram. Havia muitas expectativas em toda a sociedade em relação à Assembleia Constituinte, bastante representativa e determinada em sua missão de elaborar uma Constituição Republicana para o país. Mas a pobreza reinante era impressionante, em meio a uma vibrante cultura milenar. A economia informal é a regra e a atividade que mais divisas aporta é o turismo. Trata-se de um país imprensado entre a Índia e a China, com o Tibet sob controle chinês. Nunca foi submetido ao exército imperial inglês, um orgulho local. É uma espécie de povo guardião do Himalaia, principalmente de suas abundantes águas de degelo, fundamentais, sobretudo, para Índia e Bangladesh. Lembro que Buda e o budismo nasceram no Nepal. Hoje o país pode ser visto como uma síntese entre hinduísmo e budismo, com predominância do primeiro.
Havia, nesta época, uma especie de encantamento com o Brasil, seu processo democrático, a Constituição, o PT e o governo Lula, os programas sociais. As lideranças locais estavam informadas, mas queriam saber mais. Quando lá cheguei não fazia ideia de tal interesse, inclusive pelo papel do FSM no Brasil, região e mundo.
Eu tinha meu momento particular. Meu irmão mais novo, com menos de 50 anos, havia falecido em final de julho, vítima de um câncer. Fiquei abalado e precisava de um momento da velha meditação para me entender e entender as surpresas da vida. Aquele convite para caminhar nas montanhas caía bem. Também precisava pensar onde havíamos chegado com o Fórum Social Mundial, que anunciou a insustentabilidade da globalização, mas não tinha respostas para outros mundos em pela crise de 2007-08.
O hábito de fazer diário sobre minhas meditações, adquirido na adolescência, me levou a registrar tudo que fiz, vi e conversei no Nepal. Fiz também, sem ter jeito para isto, centenas de fotos. Hoje revi as anotações no diário daqueles dias. Katmandu me impressionou pelos palácios e templos, agora destruídos. É um cidade num vale muito fértil, antigo lago que secou, provavelmente atingido por um dos periódicos terremotos, mas segundo a tradição foi um Deus que o secou. Hoje é uma cidade densamente povoada, com um dos trânsitos mais caóticos que conheço. A parte do centro velho, mais atingida pelo terremoto de agora, pela sua arquitetura mostra como no Nepal se misturaram reis, deuses e castas na sua formação como povo e como cultura. Nas ruas do entorno – uma espécie do Saara carioca – muitas lojinhas e, sobretudo, muita gente, bicicletas, motos, caros, monges e vendedores de rua, todos compartindo o espaço. A gente respira uma cultura milenar, mas ao mesmo tempo contemporânea, de nosso tempo. Depois visitei a Stupa, onde se encontra o maior templo budista, algo impactante. Vi também o Monkey Temple, na colina que permite uma vista fantástica de Katmandu e que deu origem a ela. Será que o terremoto, além das enormes perdas em vidas humanas, atingiu de maneira irreversível esta síntese cultural e histórica única? Do que vi, o terremoto no Nepal nos atinge a todos, como humanidade. Algo de nossa rica diversidade pode estar sendo destruída.
Fiquei muito impressionado com a dificuldade de unir um país tão pequeno, visto pelos olhos de um brasileiro. As distâncias aí, saindo de Katmandu, se medem por dias de caminhada e não por quilômetros. O interior do país é legado por trilhas, compartidas por famílias que se deslocam, carregadores de gaiolas de galinhas, bebidas, geladeiras, camas, tudo enfim, tropas de burros com seus guias, rebanhos de cabras das montanhas do Tibet para serem vendidas em Katmandu, grupos de turistas caminhando. A trilha que segui leva até o Tibet. Aliás, é a principal via para o Tibet, um mês e tanto de caminhando montanha acima. As trilhas são caminhos que contornam montanhas, de chão batido e de pedras, irregulares. Nos trechos mais íngremes as trilhas viram rudes escadas de pedra. Para atravessar os inúmeros rios e riachos, nas veredas e pequenos vales entre montanhas, pinguelas suspensas por fios de aço, para todos que compartem a trilha, mesmo os rebanhos e os burros carregados. Aliás, a cada curva uma surpresa, pois um dos picos gelados do Himalaya aparece deslumbrante ao longe. São trilhas estreitas que ligam povoados, passando pelo meio deles, com casas totalmente abertas, moradores sentados no chão como é o costume, todos cumprimentando os passantes. A gente passa por vários povoados num mesmo dia de caminhada. O mais incrível é que a língua e o jeito de se vestir vai mudando. A própria pequena agricultura em terraços vai mudando, assim como a biodiversidade da floresta que teima em ocupar os lugares que as rochas das montanhas deixam. Como unir um país assim? Devem ser mais de 80 línguas locais. A mais importante rodovia, praticamente única, liga Katmandu à Índia. Fiz a aventura de ida de Katmandu a Pokhara num micro ônibus, naquela pista de dupla mão, sem acostamento. A volta não foi tão melhor, pois foi num velho avião a hélice de 30 lugares, mas com o privilégio de curtir o Everest.
Lembro dos muitos encontros e debates em Katmandu, após a pausa dos dias de caminhada. Destaco aqui três deles: o primeiro, com Gragan Thapa, um líder jovem do Congress Party na Assembleia Constituinte, ex preso político, que se definia como social democrata; o segundo, com outro líder na Assembleia Constituinte, do UML – United Marxist Leninist Party; o terceiro, com umas 25 personalidades locais, organizado pela revista “Evolução”, publicação mensal em sânscrito, com tiragem de 17 mil exemplares em 2008, feito fantástico para o Nepal. Em todos estes encontros fui um ativista brasileiro, profundamente engajado no Fórum Social Mundial, sendo questionado sobre o Brasil, a democratização, o mundo. Estes encontros no Nepal me fizeram sentir a enorme responsabilidade que a história da vida acabou pondo nos meus ombros. Eu estava lá como uma espécie de referência civil para eles e elas, podendo ajudar na busca de caminhos para democratizar o Nepal e na inserção cidadã soberana num mundo globalizado.
Hoje lembro de pessoas e lugares com emoção. Onde estão? Como seu país, sua república, sua democracia, enfim, vem criando caminho? Como está a situação do povo tão belo com tanta esperança nos grandes olhos? Como está cada um deles vivendo esta tragédia do terremoto? Viajei ao Nepal para fugir um pouco num momento pessoal difícil. Agora carrego um Nepal no coração que passa por um tragédia e pouco posso fazer. Que esta minha pequena crônica ajude a mais gente pensar que o pequeno Nepal é fundamental para todas e todos nós. A solidariedade, mesmo invisível, é a melhor ajuda em momento de dor e perdas.
Rio, 26/04/15
Foto em destaque: site Mochila Brasil