por Athayde Motta
antropólogo, diretor do Ibase e membro da Diretoria Executiva da Abong

 
Matéria publicada recentemente pela agência pública de notícias Kqed sobre o impacto da Covid-19 em profissionais de saúde na área de “cuidados paliativos”, termo que se refere àqueles(as) que tratam de pessoas com doenças terminais, chama atenção por diversos motivos. Com o título Palliative Care Doctors Turn to Technology to Help Those Dying Alone, o texto mostra que existe todo um campo de conhecimento e trabalho dedicado ao assunto, ainda pouco conhecido principalmente aqui no Brasil.
Existem especialistas médicos(as), enfermeiros(a), técnicos(as), terapeutas e profissionais religiosos(as), entre outros, que se dedicam a tratar os impactos físicos e emocionais em pacientes e famílias que enfrentam uma doença terminal. Em geral, esse tratamento pode levar semanas ou meses.
Nos casos mais críticos de Covid-19, quando a letalidade pode chegar a 50% dos contaminados(as), simplesmente não há tempo para lidar com uma doença que tem se revelado “semiterminal”, sem tratamento e sem cura. O resultado é que a maioria das pessoas doentes morre de forma solitária e em sofrimento, sem família e sem assistência profissional especializada em atuar em momentos finais.
Do lado da família, o perigo do contágio causa o afastamento forçado durante a doença, o velório e o enterro. Mesmo em países mais desenvolvidos, profissionais preparados para esse momento não estão conseguindo atuar e a falta de estrutura dos serviços de saúde compromete radicalmente o direito a uma morte digna e assistida, compartilhada com a família e entes queridos.
São dores que não acabam nem mesmo após o enterro. No Brasil, já temos casos em que a família se quer tem certeza se o corpo enterrado é mesmo de seu ente querido, como foi denunciado na reportagem Famílias abrem caixões lacrados à beira das covas coletivas para ter certeza de que estão enterrando seus parentes em Manaus.
A Covid-19 é uma doença cruel, mas a falta de serviços de saúde apropriados para a forma como atinge suas vítimas a torna especialmente desumana. É impossível não se emocionar com esse aspecto tão brutal da Covid-19. Trata-se de uma pandemia e também de um ponto de inflexão na história da humanidade. Se aceitarmos passivamente a perda do direito a uma morte digna, não creio que nos restará muito como seres humanos. Não importa se alguns abrem mão de seu direito para ir ao shopping ou para lutar pela sobrevivência.
Em algum momento, cheguei a pensar que tanta exposição da dor da perda de familiares causaria um trauma coletivo a nossa sociedade. Acreditei que o desrespeito aviltante de Jair Bolsonaro à perda de vidas humanas fosse causar uma indignação nacional. Estava errado, infelizmente.
Chegamos ao início do mês de maio com mais de 7  mil mortes e ultrapassamos os 100 mil casos confirmados oficialmente – sem levar em conta a subnotificação que pode aumentar esses números em até 15 vezes, de acordo com organizações como a Covid-19 Brasil e o Núcleo de Operação e Inteligência em Saúde.
O colapso iminente se espalha das unidades de saúde e hospitais para os cemitérios e quase certamente chegara às ruas. A negação do direito a uma morte digna só evidencia o constante desrespeito à vida que nos é imposto por uma sociedade excludente. A mesma sociedade que não mede esforços para concentrar riquezas e poder nas mãos de poucos, mesmo que, ao fim de tudo, todos morram da mesma forma indigna que os demais.
Do lugar que hoje ocupo, à frente da organização fundada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lamento pelo que o povo brasileiro, especialmente os mais pobres, ainda irá passar nos próximos meses. Lamento mais ainda pelos que, cientes do que nos aguarda, ainda não exercem seu direito de ir à luta por uma cidadania plena para todos e todas.

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