Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Devido ao Dia das Mulheres, 8 de março, me pus a pensar por que, em minha vida de ativista social, tomei consciência tão tarde sobre a dominação machista e as desigualdades de gênero na sociedade. Exercício nada fácil, devo confessar como homem que sou. Mas nada mais gratificante, no final, do que a gente entrar nos meandros do que nos fazem ser o que somos e ir se redescobrindo. As circunstâncias históricas da vida são dadas, mas a gente faz o caminho da vida ao vivê-la. Definitivamente, sempre temos responsabilidades pelo nosso modo de pensar e agir diante das circunstâncias, ao menos pela metade que vem carregada de vontade e consciência, exatamente aquela que faz a diferença na condição humana de uns e umas, de outros e outras.
O problema, decisivamente, não está em sermos mulheres e homens. Aliás, que maravilha! O problema – e ele é blindado – é no modo de nos fazermos sujeitos sociais mulheres e homens. Que estrutura pétrea que criamos em nossa relação onde, como homens, dominamos como se fosse um modo natural de ser e as mulheres têm que se subordinar como se natural fosse.
Ao longo da vida fui tendo uma formação que me permitiu ver estruturas sociais de classe, as formas de exploração de uma classe sobre outras, as desigualdades sociais resultantes, o poder de domínio de uma classe sobre outras. Isto me pareceu um modo de olhar suficiente e alimentou a minha militância por justiça social de forma determinante por muito tempo. Deparei-me com o racismo muito antes do que com o patriarcalismo. O fato é que racismo está mais claramente colado nas estruturas de classes sociais do que o patriarcalismo. Descobri que o problema não era só a cor, mas tinha origem na escravidão. Eu, de origem dos camponeses migrantes, servos de latifundiários na Polônia, fugindo da fome, branco como só europeus do Norte podem ser, tinha e tenho mais afinidade com negros do que com os brancos que dominavam e dominam o Brasil.
Em termos de estrutura mental e analítica, fui confrontado pela realidade empírica de movimentos sociais que não batiam com as clássicas análises de classes. Nisto, a descoberta de Antônio Gramsci, durante meu exílio forçado na França, quando fiz doutorado, ajudou muito. As classes sociais não são simplesmente um dado das estruturas, elas se fazem como tais pela luta por seus direitos, em situações históricas dadas. Neste caminho descobri os indígenas que ocupavam as terras que foram destinadas aos colonos no Rio Grande do Sul, como para os meus avós. O lugar dos indígenas na história trouxe dúvidas epistemológicas cruciais ao meu esquema rígido de classes sociais. Lembranças do passado? Lumpesinato hoje? Acho que não consegui resolver bem teórica e analiticamente o problema na minha tese de doutorado, até hoje escondida e nunca publicada. Mas hoje tenho resolvido esta questão, pois os povos indígenas desenvolveram um conhecimento e práticas de cuidado da natureza que se revelam fundamentais para o futuro da própria humanidade, para novos paradigmas civilizatórios.
Mas quando e como entraram as estruturas de gênero nos meus esquemas de consciência e análise? Confesso que ao longo de toda formação, da escola primária unidocente no interior de Erechim ao pós-doutorado em Londres, nunca tive como tema as questões de estruturas sociais a partir de gênero em meus estudos e debates escolares. Hoje isto caracteriza para mim a tal blindagem. Vivemos em sociedades onde tudo se faz para deixar por escondidas, por debaixo, entre quadro muros em nome da privacidade, ou até sob o tapete da casa, as relações de gênero. Literalmente isto, como algo camuflado no cotidiano, para mesmo a gente fazer de conta ou mesmo não ver que estão aí, nos atribuindo lugares e funções sociais como mulheres e homens, totalmente naturalizadas.
Na França do anos 70 me deparei com movimentos feministas. Parecia algo meio exótico para meu modo de pensar de então. Na volta, nos anos 80, fui lentamente me encontrando com movimentos feministas, mais do que transformando a sua questão integrante de minha própria luta. Ao aceitar o convite do Betinho para dirigir o Ibase, em 1990, encontrei uma equipe aguerrida de mulheres pondo na mesa dos debates as questões de gênero. Aceitei e convivi com tais questões, mas não posso dizer que aí mudei. O grupo de análise de conjuntura que Betinho reunia mensalmente desde o começo do Ibase nos 80, e que me ligou definitivamente a ele e ao Ibase, não integrava as questões de gênero. Foi com o Fórum Social Mundial que me deparei frente a frente com as feministas em termos políticos. Elas fizeram com que eu mudasse minha percepção do mundo de forma que nem elas imaginam. Tornei-me, sem o declarar, outro homem. É assim que me sinto.
Mas isto não mudou a realidade em que vivo. Mudou e muito o modo como vejo a realidade. Ocorre em mim mesmo uma profunda revisão de esquemas analíticos e de militância. Machismo e práticas a ele associados não mudam simplesmente por a gente se dar conta do quanto é machista e pratica a dominação patriarcal. Mas ter um esquema teórico e analítico que reestrutura o modo de pensar ajuda paca. Obrigado, feministas do Planeta Fêmea, que me encheram muito o saco nos primeiros anos do Fórum. Depois que me mudaram, passaram até a me convidar para os diálogos feministas que ocorriam no interior do FSM.
Há muita coisa que a gente não vê no cotidiano, dado o olhar enquadrado pela blindada estrutura social de relações desiguais de gênero. Nestes dias, li com cuidado o material produzido pelas Redes de Cidadania Ativa da área em que o Ibase desenvolve o projeto Indicadores de Cidadania – Incid. Ao se apropriar e territorializar os indicadores de cidadania produzidos, através de técnicas de cartografia e georreferenciamento, cinco das Redes de Cidadania Municipais decidiram trabalhar o “Direito civil e político à vida segura das mulheres”. É trágico e emocionante ao mesmo tempo ler os cadernos produzidos com o relato das redes sobre onde e como são violados na realidade do vivido os direitos das mulheres, as agressões de que seus corpos podem ser alvo e como isto ainda é blindado, silenciado. As leis, como a Lei Maria da Penha, e as redes de proteção são uma grande conquista de movimentos feministas. Na prática do cotidiano, nas cidades e no campo, a garantia pelo Estado de vida segura para as mulheres e a proteção em caso de violência ainda são muito deficientes na percepção das Redes Municipais de Cidadania Ativa que fizeram a cartografia de tais direitos. As redes relatam como se organizam e agem para que os direitos das mulheres de não sofrerem violências de homens por serem mulheres se tornem realidade. O fato é que a violência contra mulheres, em todas as suas formas, ainda é um lado blindado em nosso cotidiano. Apesar das leis e das redes de proteção conquistadas, no cotidiano das mulheres em municípios logo ali, na Região Metropolitana e um pouco mais além, o quadro é trágico. Até quando a cidadania de mulheres e homens pode conviver com isto?
Obrigado mulheres por lutarem para nos fazer ser melhores homens e cidadãos consequentes!