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"Viver e não ter a vergonha de ser feliz…"

Cândido Grzybowski

Sociólogo, Ibase

Hoje, deixo a conjuntura mais imediata de lado. Também, o cotidiano da política nacional só dá tristeza. É melhor descolar um pouco e se deixar impregnar por pensamentos existenciais mais da ordem da filosofia política da vida do que da análise sobre premências políticas da conjuntura. No Ibase, tivemos três dias muito intensos de lembranças e saudades do inspirador, ousado e carismático Herbert de Souza, o Betinho. Foi gratificante compartir reflexões a partir do legado do Betinho, que nos deixou sem volta faz 20 anos. Claro, fizemos à moda Betinho, lembrando, discutindo e curtindo a vida com cerveja gelada e algum belisco. Nada como um ambiente de bar para a gente se dar conta que merece viver feliz, onde política vira um modo de ser e praticar cidadania sem negar o prazer de viver a vida única que nos foi dada como um dom. Betinho soube combinar tudo isto de modo exemplar.
Agora, estou no meu refúgio, a Chácara Iru. Como hoje é meu aniversário de 72 anos, passei o dia lembrando momentos de minha própria vida e buscando o sentido do passado vivido. Comecei pensando no que se passou quando decidi largar tudo e atender ao pedido do Betinho de integrar a direção do Ibase ao lado dele e de Carlos Afonso. Eu era professor na FGV, no IESAE, e gostava de dar aulas e orientar dissertações de mestrado, além da possibilidade de fazer pesquisas sobre movimentos sociais no Brasil. A decisão de aceitar o apelo do companheiro Betinho, concretizado em março de 1990, mudou radicalmente minha vida, uma vez mais, a bem da verdade com minha própria história pessoal.
Sofri, reconheço, para entender o cotidiano do Ibase de então. Eu tinha uma parceria política de vários anos com o próprio Betinho, mais do que com o Ibase. Aliás, Betinho tinha uma capacidade de convocar a gente a se engajar sem igual.  Mas eu não sabia como era o Ibase como organização da sociedade civil. Nos primeiros meses me pareceu uma verdadeira confusão. Mas logo percebi que havia um sentido profundo naquilo tudo e que valia apostar. O Ibase e a ousadia de Betinho de transformar o mundo pela cidadania ativa – sua ideia central combinada com os famosos cinco princípios e valores éticos da democracia – começou a ficar grande, muito grande, apesar de sua pequenez real. Fiz uma imagem do Ibase, até depois usei em várias palestras e artigos, como sendo uma pulga, que morde e incomoda muito apesar de ser minúscula. Até o elefante Estado se incomodava com as mordidas da pulga Ibase/Betinho. Como consequência me tornei Ibase já faz mais de 27 anos. Agora sem o peso da direção, finalmente!
Lembro de tudo isto em relação à família, comunidade e lugar em que nasci. Um fato fundamental da vida é que a gente nasce como uma dádiva. De quem? Uma produção humana sempre incompleta é das filosofias e teologias a respeito disto. O fato é que nascemos e compartimos, queiramos ou não, uma mesma humanidade num processo de viver que, independentemente de circunstâncias, o primeiro dia já é também o primeiro dia que nos aproxima da morte. Reside aí a ventura do viver consciente do morrer.  No entanto, temos oportunidade de viver, mais tempo ou menos, curtindo a vida. Como já muitas vezes comparti minhas reflexões a respeito com a imagem da vida como um ônibus compartido e nós, individualmente, passageiros nele, com trajetos curtos ou longos, mas todos finitos. No vai e vem, saltaremos do ônibus da vida, como bem comum compartido, sem muita escolha sobre onde e quando.
Escolhi um trechinho da canção do Gonzaguinha para título desta minha crônica pois, penso, ela sintetiza bem o que me vem hoje. Vivi até aqui e agora buscando sempre ser feliz. E não tenho vergonha em dizer que foi a busca de felicidade que marcou minha trajetória. Sempre lembro algo traumático, mas fundamental: os oito anos passados naquela instituição seminário católico capuchinho do final dos 50 e início dos 60. Vivi adolescente e a primeira juventude num seminário. Num certo sentido, porém, dadas as circunstâncias históricas, foi o melhor que poderia ter acontecido para mim. Vivia feliz como membro de uma família grande. Naquela idade de socialização o entorno é fundamental. E meu entorno imediato rompeu-se, com muita dor, com o ingresso no seminário. Para sobreviver num ambiente de poucos afetos e muitas disciplinas, como a instituição totalitária do seminário de então, a gente é levado prematuramente a filosofar sobre sentido na vida que leva. Por que estou aqui? Que será minha vida? Acho que, em parte, me graduei em filosofia por isto.
O fato é que o seminário moldou meus valores éticos e deu sólida formação básica a mim e meus companheiros, coisa que só filhos de gente muito rica conseguiam no então. Além do currículo normal, como o seminário era uma escola de mais horas do que normal, aprendi de tudo, além de leituras da bíblia e muitas biografias de santos: da música clássica e canto, inclusive cantochão, às técnicas mais sofisticadas de horta, jardinagem e fruticultura da época; da marcenaria aos sistemas de classificação de livros, sem contar a sua encadernação; da datilografia à contabilidade (por ser bom em matemática, me tornei o responsável pelo registro das contas individuais de cada seminarista, do que compravam e do que vendiam em terços ou outros objetos produzidos nas horas vagas, pois dinheiro não circulava). As longas horas de silêncio no dia a dia, as compensei escrevendo e lendo. Todos os dramas de adolescentes estão registrados em cadernos e cadernos de um diário, até hoje lido somente por quem se tornou, após o seminário, a minha amada amante, com quem comparto a vida por 49 anos, com duas filhas e três netos.
Faço parte da segunda geração de filhos de imigrantes poloneses que se radicaram nas áreas de colonização no Sul do Brasil, em sua maioria camponeses fugindo da servidão na Polônia e da miséria, entre 1850 e a I Guerra Mundial. Meus bisavós, com seus filhos, entre eles meu avô com 10 anos, chegaram ao porto do Rio de Janeiro em 1890 e foram alojados no hoje Museu da Imigração. Nasci numa comunidade dominante polonesa na zona rural de Erechim, no Norte do Rio Grande do Sul. Minha primeira língua foi o polonês. Minha iniciação em português foi com as aulas de alfabetização e com colegas numa pequena escola unidocente municipal do povoado, uns três Km distante da casa de meus pais.  Meu pai, um autoditada – teve um ano de escola formal e minha mãe nem isto, mas foram ousados e inovadores para a época. Para nos dar acesso à educação – já éramos sete então – pai e mãe decidiram mudar toda a família para a periferia da cidade de Erechim, onde havia escolas razoáveis. Católicos praticantes, foi fácil convencer pai e mãe a mandar seu filho Cândido, aplicado nos estudos, para o seminário. Uma revolução na minha vida, com pouca escolha minha.
Não vou aqui passar em revista as várias ocasiões de transformações radicais no rumo da vida. Particularmente hoje estou pensando no quanto a vontade individual molda a gente. Tenho consciência que as circunstâncias também são parte fundamental de nossas opções, pois condicionam a vontade. Mas, bem ou mal, elas não determinam num sentido estrito. Sempre há caminhos de escolha nossa, que cabe a nós decidir. O problema é que uma vez seguindo uma certa direção e fazendo um caminho não temos a possibilidade de volta ao que era antes. Podemos, sim, rever decisões e escolhas. Mas voltar atrás é voltar a circunstâncias que também mudaram. Ou seja, a dialética da vida é esta mesma: vontade/opção e decisão + circunstâncias/históricas e territoriais. Em síntese, a vida vivida é sempre compartida e única. Esta dualidade não tem solução, pois a solução é a morte, o puro fim.
Enfim, a venturosa sina é “viver e não ter a vergonha de ser feliz…”. Reflexões dispersas no dia de chegar aos 72 anos no meu viver feliz, apesar das angústias existenciais e dúvidas, de conjunturas boas e ruins, até dramáticas, das tragédias e injustiças.
Rio, 11/08/17

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