Cândido Grzybowski
Sociólogo, Ibase
O ajuste econômico imposto pelo governo está sendo uma restauração do mais selvagem capitalismo. Que se danem trabalhadores, pobres e excluídos. Que se dane a sociedade como um todo, pois o que mais importa é ganhar dinheiro. Direitos iguais? Ora, ora! Tudo deve ser proporcional ao mérito, ao empreendedorismo, à capacidade de buscar o máximo para si. Direitos só para os bem sucedidos, aqueles que merecem, que podem inclusive comprar favores e, por que não, “adquirir direitos” de asseclas nos governos, entre políticos e representantes do judiciário. O dinheiro, a exploração e os lucros são os únicos que contam, pois são os pilares do capitalismo. E quanto mais livre, mais global, mais independente de regulações, acima de direitos de povos e cidadãos, a saúde do capital, medida por sua taxa de crescimento da acumulação, será melhor para todos. O parâmetro é a lei da selva: que vençam os mais fortes e, também, os espertos e ladrões, no caso humano.
O fascismo está voltando a criar raízes fortes em nosso seio num contexto de democracia formal de baixíssima intensidade. A institucionalidade democrática conquistada há 30 anos atrás está sendo interpretada, manipulada, mudada e usada de forma “coercitiva” – não só pelo juiz Sérgio Moro, diga-se de passagem – contra leis constitucionais e direitos fundamentais próprios da essência política da democracia. A democracia, como processo virtuoso de mudança e construção de futuros possíveis, se baseia na legitimidade e na legalidade da permanente tensão e disputa entre todas e todos, com base no reconhecimento de iguais direitos políticos de participar, sem distinção. A imposição de interesses de uma parte contra todas as demais, pela força bruta ou pela manipulação da institucionalidade por políticos e judiciário, sempre é e será um golpe contra a democracia. Quando isto acontece, ao invés de avançar na democratização e conquista de direitos iguais, retroagimos.
Todo o pacote de ajuste tem um sentido de impor o “fascismo social”, mantendo a fachada democrática, como bem define Boaventura Souza Santos em seus escritos. Para o ministro da fazenda do Governo Temer, o importante é o ambiente para os negócios, não o bem estar econômico da sociedade brasileira. Trata-se de facilitar os lucros e não regular a economia para que produza bens e serviços de qualidade e em abundância para a sociedade. Os lucros, na visão do ministro, são a prioridade e não os direitos de cidadania – direitos econômicos, sociais e culturais, direitos civis e políticos e direitos coletivos iguais para todas e todos que vivem no Brasil, sem nenhuma discriminação. O ministro vai mais longe ainda, pois ele é o mentor do que se pode chamar até de um projeto coerente e agressivo de desenvolvimento capitalista selvagem deste governo golpista, tanto na política econômica, monetária e fiscal, como no pacote de medidas legais radicalmente antidemocráticas, que vêm sendo adotadas, uma após outra, pelo Congresso submisso e conivente com golpistas que temos.
Os dados começam a confirmar o “catastrófico sucesso” do ajuste fascista na economia. Segundo dados divulgados pela Economatica, baseando-se em documentos entregues pelas empresas à CVM, as empresas de capital aberto tiverem um lucro nominal de 9,4% em 2016 com relação a 2015. Lucro de mais de 98 bilhões de R$. Foram consideradas 295 empresas, deixando de fora a Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil e Vale, por distorcerem o resultado, dado o seu tamanho e sua situação específica. Que fantástico e perverso resultado! Isto que os bancos perderam 13,28% em 2016, com o conjunto das 23 instituições bancárias consideradas ganhando “somente” 48,5 bilhões! E a economia como um todo, medida pelo PIB indo para trás em mais de 3%! O que é isso, companheiro?
A selvageria do ajuste aparece quando se comparam tais dados com o desemprego. Segundo a última PNAD Contínua do IBGE, o desemprego no último trimestre de 2016 foi a mais de 12%, um crescimento de 3% em relação ao último trimestre de 2015. Como pode o Governo Temer e seu ministro da fazenda dizerem que o ajuste é necessário para a economia? Economia é lucro de bancos e de empresas? Por que a mídia privada dominante dá total destaque ao discurso oficial do governo golpista, por exemplo, no caso da PEC da Previdência Social e na Reforma Trabalhista, e não à total deterioração nas relações de trabalho e qualidade de vida?
Mas o capitalismo selvagem já mostra seus resultados e dados em muitas outras frentes. A que atribuir a verdadeira barbárie na questão da segurança pública, sobretudo a violência bruta e assassina contra quem vive em favelas e periferias? A segurança já não era grande coisa, mas a volta desenfreada da violência em nosso cotidiano, em todo lugar, nas cidades e zonas rurais, é um fato estarrecedor. A isto se soma a verdadeira “naturalização” da pobreza e miséria. Depois de lutarmos muito contra a fome, a miséria e a discriminação, exigindo e conquistando direitos e políticas, estamos diante de um monumental desmanche de viés restaurador do passado, com uma volta ao mais puro cinismo social e político. Em apoio aos golpistas, já temos em nosso seio social significativos setores aplaudindo até discursos de quem acha que a raiz de todos as nossas mazelas está em tentar reconhecer direitos de quem sempre foi condenado a viver excluído, sob violência, sob descriminação e domínio de machismos e racismos de toda espécie. Trata-se de um ataque pela política e pela mídia aos princípios e valores democráticos que podem permitir um mínimo de convivência e civilidade em nossa diferença.
Tem mais. Neste contexto criado pelo golpe e o Governo Temer, está passando batida a total regressão nas questões ambientais. O nosso enorme patrimônio natural virou mero estoque de recursos naturais a serem explorados de forma privada o mais rápido possível, sem regulações restritivas, sociais ou ambientais. Está em curso uma total flexibilização nas leis e regulamentos ambientais, de terras, territórios indígenas e quilombolas, águas, áreas de mineração e as grandes jazidas de petróleo no pré-sal. Esvaziam-se os órgãos gestores e até estão entregando a empresas privadas ou a parcerias público-privadas empresas públicas fundamentais como a CEDAE, no Rio de Janeiro. Em pouco mais de um ano, desfizeram-se as conquistas obtidas por lutas ao longo de 30 ou mais anos. Aqui estamos falando de algo estratégico para o futuro democrático com justiça e sustentabilidade socioambiental. A barbárie que nos está sendo imposta destrói a base natural da vida em nosso país, sobretudo para futuras gerações, ao mesmo tempo em que destrói a sociedade brasileira.
Resistir a tudo isto é necessário, mas está se revelando totalmente insuficiente. Precisamos reconstruir um imaginário que nos dê uma visão estratégica para o além deste capitalismo selvagem e antidemocrático. Precisamos, em nossas trincheiras de resistência, recriar todo um pensamento capaz de diagnosticar as fragilidades do que nos está sendo imposto e, ao mesmo tempo, nos apontar um possível alternativo que possa ser construído desde aqui e agora, um caminho de transição conflitiva, sem dúvida, mas virtuosa. No processo, com determinação política de que é possível, agregar sonhos e vontades num grande e irresistível movimento cidadão e democrático com força constituinte e instituinte de um outro Brasil, para nós e gerações futuras.
Rio de Janeiro, 21 de abril de 2017, pensando em uma nova independência.