Cândido Grzybowski
Sociólogo, Ibase
O desmanche em curso que está sendo imposto pelo Governo Temer ao país, com a subserviência de um Congresso “federação de interesses privados”, é um ataque frontal às conquistas democráticas de direitos, vistos como entraves ao processo de desenvolvimento econômico impulsionado pelo livre mercado. Ou seja, trata-se de criar um ambiente favorável e sem regulação estatal aos capitais que buscam, antes de tudo, sua autovaloração, a maior acumulação possível. É uma operação de ataque à institucionalidade democrática e aos direitos em nome da economia, como se o tal ambiente favorável para o crescimento econômico fosse a ditadura e a barbárie, em última análise. Até pode ser, mas fica a pergunta, então: por que ter economias que não servem para o bem estar da gente, para o bem viver? A bem da verdade, precisamos reconhecer que o nosso governo nada tem de original, não passa de uma atabalhoada versão golpista em território brasileiro de movimentos que ocorrem no mundo todo. Direitos iguais de cidadania para todas e todos e economia capitalista da busca de interesses privados são, por definição, polos de uma contradição fundamental. Definem a essência da luta política no tempo histórico que vivemos, ainda sem um desfecho previsível. No momento, no Brasil, Região e mundo inteiro, a onda é totalmente favorável ao capitalismo e suas barbáries. Sentimo-nos parte de um mundo único, de interdependência entre todos, diferentes povos e culturas, devido exatamente à globalização neoliberal capitalista. Mas, talvez, a consciência de ser uma mesma humanidade seja mais de ameaças do que de futuros melhores. Nunca a concentração de riquezas foi tão escrachada, onde um punhadinho de ricaços – com pequeno esforço dá para decorar os nomes deles – tem mais bens acumulados do que mais da metade da humanidade!
Em nossas ainda fracas trincheiras de resistência diante do tsunami político que se abateu sobre nós, ainda temos pensado e debatido pouco sobre a relação do desmanche político democrático em curso e a questão ambiental. Cá com meus botões, tenho pensado no apagão que foi operado na opinião pública, neste período golpista, em todo o debate sobre a mudança climática e as ameaças à integridade da biosfera. O pior é que isto também não chega a ser uma especificidade brasileira, pois a agenda dos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável), adotada em 2015, parece relegada às calendas gregas. O truculento Trump tem ajudado um bocado para isto acontecer, mas seria dar-lhe crédito maior do que merece pelo que está posto na mesa global de negociações. Estamos discutindo muita coisa em termos geopolíticos, enquanto o desastre ambiental… segue o seu curso ameaçador.
Minha preocupação, porém, vendo como a questão se apresenta aqui no Brasil, é a íntima relação – visceral até – que começo a ver entre meio ambiente e democracia, entre direitos de cidadania e sustentabilidade, entre cidadania ativa e integridade da própria biosfera. Não sei ainda se estou me aventurando em terreno de areias movediças intelectuais e políticas. O fato é que vejo uma contradição irreconciliável entre democracia, ou mais específica e radicalmente, entre limitação e negação de direitos de cidadania e livre mercado para capitais para a integridade da biosfera. Literalmente, para preservar a integridade do bem comum maior para se viver, o Planeta Terra e seus complexos sistemas ecológicos que formam a biosfera, precisamos de mais democracia e efetiva democracia participativa e de menos, muito menos, livre mercado e a nefasta operação dos capitais desregulados. O livre mercado tem como pressuposto a destruição ambiental, a mercantilização e a exploração sem limites dos bens comuns naturais de todas e todos, vistos simplesmente como recursos a serem usados livremente.
Uma das maiores falsidades intelectuais criadas ultimamente é a tal economia verde ou capitalismo verde. O incrível é que o Governo Temer ataque de forma radical toda a regulação ambiental sem mesmo precisar falar em economia verde. Simplesmente abre tudo, com avalanche de Medidas Provisórias, para o livre investimento privado. Vínhamos de um processo de criação de áreas comuns – reservas indígenas, terras de quilombolas, reservas extrativistas, florestas e áreas protegidas, parques, mosaicos, etc. -, tímido para a dimensão do problema, mas virtuoso de toda forma. Agora, estamos voltando ao tudo liberado, até para o grande capital de corporações. O mesmo está acontecendo nas estratégicas reservas de petróleo do pré-sal, ameaçadas de serem entregues à predatória exploração de corporações petrolíferas especialistas em, exatamente, exploração de recursos na maior rapidez possível, sem a menor preocupação social e ambiental. Seria isto possível num contexto democrático minimamente efetivo?
Enfim, volto à minha questão de fundo. A tese que estou elaborando é que capitalismo não rima com democracia substantiva e nem com integridade da biosfera. As ameaças do capitalismo são essencialmente contra modos da sociedade criar modos de vida baseados em direitos iguais para todas e todos e sustentabilidade econômica e ambiental, com gestão responsável e renovável das possibilidades que nos são dadas pelos territórios que ocupamos e dos quais extraímos condições materiais e até simbólicas de vida. Afinal, não inventamos praias, florestas, rios ou montanhas, os recebemos com bônus de vida. Ter direitos iguais a eles e respeitá-los em sua integridade, para nós e gerações futuras, é uma questão de democracia essencial.
A discussão e a resistência aos ataques aos direitos de Previdência Social, de trabalho, educação e saúde, de mobilidade e segurança, entre tantos outros duramente atacados neste contexto do governo golpista, são fundamentais. Mas, será que é possível mirarmos direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais, deixando de lado os direitos socioambientais, ou mais precisamente, os direitos aos bens comuns naturais? Não é só para preservar direitos já conquistados que precisamos resistir e até imaginar viradas democráticas num futuro, mesmo que ele seja demorado a construir. Precisamos, desde aqui e agora, integrar a questão dos comuns ao centro de nossas estratégias e construção de futuro. Talvez, a destruição ambiental que os golpistas estão promovendo seja muito mais difícil de reverter, pois o ataque à integridade dos biomas pode até ser irreversível.
Rio de Janeiro, 17/04/17