Cândido Grzybowski
Socólogo, diretor do Ibase
Começou a era Trump para os EUA e para o mundo inteiro. Que será? Por enquanto, muitas incertezas cercam o novo presidente. Como está à frente da maior potência econômica e militar do mundo, com o dedo no gatilho daquele gigantesco arsenal atômico, a gente fica inquieto. Ainda mais que se trata de alguém mais para truculento do que para diplomata. Considero-o uma verdadeira armadilha nestes tempos de incertezas e muita violência que vivemos, do local ao mundial.
Desta vez, recorri ao dicionário para ter certeza da associação simbólica que ando fazendo desde que Trump se apresentou como postulante nas prévias eleitorais norte-americanas. Trump, que se pronuncia “tramp”, vira para nós latinos “trampe” ou, mais facilmente, “trampa”. Em espanhol, trampa é uma armadilha para caçar e, figuradamente, um ardil para prejudicar ou enganar. No nosso bom português, segundo Houaiss, trampa é engano doloso, trapaça, velhacaria, além de armadilha para caçar, para os gaúchos. Em termos linguísticos, a associação de sentidos que eu vinha fazendo, lá no fundo do cérebro, com o nome do novo presidente dos EUA, tem razão de ser.
Será que estamos diante de um personagem que está aprontando armadilhas e nos enganando? Foi só discurso de palanque eleitoral ou é algo para valer? Seria possível enganar tantos milhões de cidadãs e cidadãos que nele votaram? Ou, o seu discurso eivado de preconceitos e linguajar nada diplomático simplesmente sintoniza com o conservadorismo, as contradições, as desilusões e os ressentimentos que grassam no seio das camadas populares norte-americanas? O que isto pode se tornar no exercício do poder real daquela gigantesca máquina econômica e militar que são os EUA?
Como sempre digo, nada como um dia após o outro para nos fazer lembrar que a vida se faz e se renova. O futuro não é determinado pelo passado, mas se constrói a partir do aqui e agora, apenas não podemos ignorar o que está dado, o que foi feito até aqui. O passado é parte das condições que nos são dadas para fazer o futuro. Pensando assim, vejo uma inflexão no neoliberalismo e na geopolítica que a armadilha Trump pode conter. Não vou entrar nas questões extremamente preocupantes de machismo, patriarcalismo e racismo do discurso de Trump, tão ao gosto da extrema direita norte-americana, do Tea Party, constituinte real do governo que tomou posse na última sexta feira.
Começo pela quente questão das migrações na atualidade. Nós, humanos, sempre migramos. Mas migrar nunca foi aventura simples. Nestes tempos de globalização neoliberal, de livre mercado e de intensa circulação de mercadorias e capitais financeiros, as maiores restrições para circular pelo mundo são para gente, especialmente para quem deseja ou precisa migrar e não se enquadra nos perfis “desejáveis” dos países receptores. As políticas migratórias no mundo de hoje são extremamente discriminatórias, seja na Europa ou nos EUA e Canadá. Trump assume com propostas radicais em relação à migração, especialmente contra os 11 milhões, na maioria latino-americanos, considerados “ilegais”, vistos como usurpadores dos empregos que faltam para os norte-americanos. A deportação dos “ilegais” e a muralha que prometeu completar – já existe em longo trecho – na fronteira com o México podem ser tarefas difíceis, mas, simbolicamente, a xenofobia foi legitimada. Assim, todos os governos e movimentos políticos ultraconservadores pelo mundo tem um aliado de grande peso no seu esforço de fechar fronteiras, especialmente aqueles da Europa diante daquela avalanche de migrantes dos últimos dois anos. Ou seja, tudo o que Trump fará, como principal gestor do imperialismo na atualidade, terá impacto mundial, além de interno e regional.
Outro tema de importância vital para a humanidade e o planeta tem a ver com a questão da mudança climática e do cuidado com a natureza, de forma geral. Trump se alia aos que negam a evidência científica da mudança climática. Pior, acha que a sustentabilidade ambiental não é uma questão real. Chegou a dizer que isto das emissões de CO2 e da mudança climática é uma invenção dos chineses para prejudicar a indústria americana e obrigá-la a se transferir para a China. Ele se referia ao fato que grandes corporações capitalistas industriais dos EUA e dos países desenvolvidos se tornaram as principais forças motoras da grande expansão capitalista da China, hoje com a maior malha de indústrias “maquiladoras” (que maquiam os produtos, pois a sua concepção, a tecnologia e os capitais são de fora) que abastecem o mundo, a serviço de um capitalismo com estratégias globalizadas de acumulação sem freios. Na linguagem “populista” de Trump, em nome das emissões, os chineses tiram empregos de norte-americanos. Em termos ambientais, Trump anuncia que será contra tudo o que vem sendo discutido nas negociações multilaterais sobre clima e meio ambiente. Em termos práticos, está liberada a exploração e uso de energia fóssil, mesmo a mais poluente como o carvão, de que os EUA tem grandes reservas ainda.
A questão ambiental – geopolítica dado que temos um só Planeta Terra e dada a interligação de todos os sistemas ecológicos, fundamentais para a sua integridade – remete para a questão nacional. Trump, como as diferentes correntes de extrema direita que ressurgem com força e assustam o mundo, é um nacionalista a seu modo. Quer uma América para os americanos, a volta do ideal e orgulho de ser parte da pátria grande, os Estados Unidos da América. Defende empregos para os EUA, produzir internamente e importar menos. Com tal discurso, teve a vitória eleitoral garantida pela classe trabalhadora branca daquele “núcleo do aço”, da grande indústria americana do pós II Guerra Mundial, e do interiorzão agroindustrial e petrolífero. Por isto, anuncia que é contra todos os tratados de livre comércio e que vai recriar e abusar do protecionismo. Se isto for concretizado o impacto sobre o mundo globalizado é imediato e evidente. Mas será isto possível?
O neoliberalismo, mais do que uma agenda de 10 pontos emanada do “Consenso de Washington”, é um processo real de domínio do mundo pelas e a serviço das grandes corporações econômicas e financeiras. Hoje, umas 50 delas tem um volume de negócios maiores do que o PIB de mais de 100 países. Suas estratégias não são nacionais e buscam se libertar de todas as amarras reguladoras estatais, proposta de todos os tratados de livre comércio. Para isto usam até paraísos fiscais, forma de corrupção e ocultamento de negócios, como apoio estratégico de sua operação. As grandes corporações de origem norte-americana lideram tal processo. Como elas vão reagir às propostas de Trump?
Claro, o capitalismo é dominado pelas grandes corporações, cada vez mais, mas não se limita a elas. Existe um conjunto importante de negócios subsidiários bem “nacionalizados”, de pequenas e médias indústrias e, sobretudo, de comércio e serviços, mesmo se dependentes das grandes corporações. Mas são as grandes corporações econômicas e financeiras, os bancos e as bolsas, os tais 1% da humanidade, que “gerem” a economia globalizada. O problema é a fatia do bolo que fica para os países e os outros parceiros vitais para que ele cresça. Trata-se de disputa da riqueza gerada, como ela irriga a economia real, nos territórios em que vivemos e levamos a vida. O sentimento de perda da classe trabalhadora norte-americana neste mundo capitalista globalizado tem fundamento real. Afinal, 130 executivos de multinacionais dos EUA tem renda superior do que 110 milhões de norte-americanos juntos! O salário mínimo nos EUA está congelado desde o começo dos 70, do século passado.
Será possível termos algo como nacionalismo neoliberal? Afinal, o grosso da agenda neoliberal é parte do ideário e será radicalizada por Trump. Suas propostas de revisão são na questão das relações comerciais. Para o bem da verdade, há que se reconhecer que em termos práticos sempre houve protecionismo em algumas áreas, mesmo nos EUA, que querem a liberação das compras governamentais, mas nunca permitiram que isto se praticasse nos EUA. Como será esta política de reindustrialização do Trump? Como vai afetar o NAFTA – Tratado de Livre Comércio entre EUA, Canadá e México? Para o México, totalmente dependente dos EUA, esta é uma ameaça vital no imediato, além da questão dos migrantes. A Europa, hoje dominada pelo neoliberalismo, sob o comando da Alemanha e Comissão Europeia, subsidiada pelo FMI ( a “troika”) sente-se ameaçada, ainda mais que Trump não quer mais financiar a própria segurança europeia (OTAN).
Enfim, a armadilha Trump anuncia terremoto na própria geopolítica mundial. Ele não esconde a admiração por Putin, coisa que tem clara implicação no tabuleiro geopolítico de um mundo em disputa por recursos naturais, especialmente petróleo. Hoje, assistimos um ensaio de guerra mundial localizada no conturbado Oriente Médio. Como irão se mexer as forças e os seus arsenais que tem implicações no mundo todo? Afinal, a barbárie já faz parte de nosso cotidiano e tende a ser naturalizada. Que desdobramentos podem acontecer com um Trump com o dedo no gatilho nuclear dos EUA?
Rio, 23/01/17