Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Não sei se em outros estados do Brasil a situação é igual ou até pior. O fato é que viver no Rio de Janeiro, neste momento, é ser surpreendido quase diariamente por fatos extremos de grande impacto político. Isto poucos meses após aqueles dias de festa das Olimpíadas e das Paralimpíadas, que escondiam a gravidade da situação real larval, desde antes. A crise é de múltiplas dimensões. O governo está de caixa vazia, sem dinheiro para pagar salários. Servidores sem receber se revoltam. Foi patética a cena de policiais à paisana na Assembleia Legislativa sendo reprimidos por policiais fortemente armados, ambos os lados usando violência incomum. Lá dentro, na Assembleia, um “bando” de representantes, sem um mínimo de legitimidade para enfrentar a crise, discutindo o impossível: tornar legais medidas de ajuste das contas do estado do Governo Pezão, totalmente anticonstitucionais. Dois ex-governadores presos por corrupção, Cabral e Garotinho! Aliás, se fossem presos todos os políticos corruptos por aqui o grande complexo de prisões de Bangu seria pequeno e, provavelmente, ficaríamos sem representantes para nos governar. O quadro de gravidade se completa com aquela guerra de cenas de filme no conjunto de favelas da Cidade de Deus, com helicóptero caindo e tudo mais. Na verdade, a ação militar violenta em favelas é algo diário, desde muito tempo. Trata-se de territórios sob ocupação militar, de verdadeira guerra, com muitas vítimas, especialmente entre jovens negros favelados, mas de militares também. Afinal, guerra é guerra. É isto que assistimos no seio de nossa cidade como uma espécie de normalidade do viver em meio à barbárie.
A deterioração do espaço político, em alguns lugares mais que outros mas em todos visível, é parte de uma grande onda de perda de substância democrática. No caso brasileiro, o golpe que depôs o governo eleito tornou a disputa política algo totalmente fora das “regras”, do salve-se quem puder, usando qualquer meio possível. Está em curso uma espécie de canibalização da política, uns atribuindo a outros crimes maiores que os seus. Não é de surpreender que em tal conjuntura prosperem “Bolsonaros” e apelos a um autoritarismo que, pensávamos, estavam eliminados no seio da nossa sociedade civil.
De meu ponto de vista, entramos numa zona de turbulências que extrapola em muito o contexto local e nacional, pois envolve o conjunto dos povos do planeta. Não dá para dissociar o que se passa no Rio, no Brasil e na América do Sul, do Trump sendo eleito nos EUA, da Marie Le Pen sendo líder nas pesquisas eleitorais na França, do “Brexit” na Inglaterra, dos governos extremamente conservadores, com o ressurgimento da Rússia como potência, e da conservadora Merkel da Alemanha, por ironia, ser considerada nosso esteio democrático. A verdadeira guerra, dos mais importantes arsenais militares existentes – Rússia e EUA -, se passa no Oriente Médio, na Síria e Irã, com a ameaça dos bárbaros do EI – Estado Islâmico. Já são normais as guerras endêmicas no Afeganistão e Paquistão, na Nigéria, Congo, Somália e Sudão. Aqui, na nossa volta, já nem estranhamos que colombianos votem pelo “não” ao fim de 50 anos de guerra civil, criando um cenário real para novo romance do falecido Gabriel Garcia Marques, que a Venezuela volta à normalidade de “guerra intestina” de uma sociedade de exclusão social sem igual, que no México e países da América Central sejam dominados por gangues. Até é de festejar que no Brasil não seja pior, pois somos mais do mesmo que se passa na Argentina, Paraguai, Peru e até o Chile. Que conjuntura antidemocrática!
Estamos diante de desgoverno, do local ao mundial. Ou melhor, estamos diante do governo total do livre mercado, aquele das grandes corporações. É isto que o neoliberalismo pregou e é isto que está conseguindo. Temos um mundo onde governos se submetem a “mercados”, às leis do livre mercado, sem regulações. Tudo é feito para atender ditames dos tais “mercados”, com a sua “mão invisível”. Na verdade, mão selvagem de leão.
A “nau está a deriva” porque quem a comanda assim o impôs. A crise que vivemos tem seu epicentro no comando escondido dos mercados, que decidem sobre o nosso cotidiano, sobre povos, sobre para onde vai a humanidade. Não dá para separar a crise fiscal do Rio de Janeiro – para voltar ao ponto inicial de minha crônica – de um assalto aos recursos que temos. A prioridade é atender mercados, sua determinação de acumular e acumular sempre mais, pois esta é a única medida hoje em dia da saúde de economias. Necessidades reais e sonhos de vida melhor de populações inteiras, do local ao mundial, são algo secundário. O defender a sustentabilidade socioambiental, contra este desenvolvimento predatório e concentrador, é tratado como heresia. Por sinal, são raros os economistas que enfrentam tal determinismo do mercado, nada científico, eleito em lei econômica única, de um fundamentalismo mais perigoso do que aquele do EI. Vivemos a ditadura absoluta do mercado!
Como transformar a crise que vivemos em possibilidade de mudança? Para começar, a crise é tão grave – crise civilizatória, na verdade – que até tentar organizar a resistência e criar alternativas está difícil. A crise nos fragmentou de um modo inusitado, pois mesmo localmente temos dificuldades para nos unir e pensar, de voltar a sonhar. Porém, nada é mais urgente do que começar a pensar que outro amanhã é possível e que ela depende mais de nós, desde o aqui e agora, do que de milagres. Naus à deriva acabam em naufrágios, em fins trágico. Voltemos a disputar e reestabelecer o comando público e cidadão antes que seja tarde! Afinal, sonhos se derrotam quando deles desistimos. Unidos não nos vencerão! É um velho chavão, mas de uma verdade extremamente atual.
Rio de Janeiro, 20/11/16