Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Estou aqui tentando dar conta de lembranças e emoções que invadem a gente num momento assim. Você recém partiu, mas a saudade de você nos invade, a todas e todos que tivemos a grande oportunidade de curti-lo como amigo e companheiro, compartindo nossas histórias de vida como educadores, ativistas e intelectuais no seio de meios populares e movimentos sociais, nas organizações de cidadania ativa e nas universidades. Você foi e é uma figura emblemática da FASE. Mas, sobretudo, você é uma referência como educador popular e pensador solidário e instigador nas lutas por justiça social e ambiental, começando lá nas resistências e emergências da Amazônia dos anos 70, vista como território a colonizar, nos tempos da ditadura militar e, até hoje, ignorando os povos que aí vivem. Ao mesmo tempo, por suas lutas, ideias e escritos, você se tornou uma das grandes figuras de referência no pensamento socioambiental do Brasil, desde a preparação da ECO-92.
Não saberei ser justo com você tentando lembrar o Jean Pierre de muitas dimensões. Apesar dos anos de sua vida no Brasil, você nunca conseguiu esconder sua origem francesa, com aquele acento ao falar. Bem, eu até hoje não consigo esconder, seja no físico, na fala ou no modo de pensar e viver, que sou um gaúcho lá do interiorzão, das comunidades de colonos de origem europeia. Mas você escrevia em português de dar inveja a muita gente. O importante para mim é que você simboliza a nascente cidadania de dimensões planetárias, que assumiu e se somou a uma tarefa hercúlea de afirmar nossa comum e igual humanidade, na diversidade de povos e culturas, e do direito de compartir e preservar a integridade do Planeta Terra como um bem comum para a vida de todas e todos, do presente e das gerações futuras.
Neste momento, Jean Pierre, não consigo deixar de ressaltar os laços profundos de amizade entre nós. Foi a querida Noêmia, amiga muito doce, sua esposa, que nos aproximou. Foi no começo dos 80. Eu voltando da França e virando professor de sociologia do desenvolvimento. Ela mestranda do IESAE, da FGV. Você na direção da FASE Nacional. Por iniciativa de Noêmia, nos conhecemos e foi ela que o convenceu a fazer o mestrado em educação no IESAE. Por estas circunstâncias me tornei seu professor formal e exerci aquele papel tradicional de autoridade professoral, até dando uma nota B em sociologia do desenvolvimento para você, só para mostrar isto. Na verdade, na contraditória relação entre professor e aluno, você me transformou e me introduziu na questão da Amazônia como território de cidadania e nos movimentos sociais brasileiros que pipocavam pelo Brasil. Quanta coisa descobri e aprendi com você, Jean Pierre, desde aquelas discussões em torno de sua dissertação de mestrado, tornada livro de referência sobre movimentos sociais na Amazônia. Bem, no processo de aproximação, que se tornou amizade, companheirismo e cumplicidade política, você me botou entre os associados da FASE e me jogou no colo, naqueles anos 80, a presidência de seu Conselho. Até tentamos criar juntos um núcleo de pesquisa e reflexão estratégica no interior da FASE, que você concretizou posteriormente com o inspirador projeto do Cone Sul Sustentável.
Quando em 1990 o nosso grande amigo comum Betinho me convidou para integrar a direção do Ibase, o grande conselho que busquei foi o seu, Jean Pierre. Você não só me incentivou a aceitar, mas, como intelectual, ativista e educador, amigo e companheiro, achou que era uma obrigação cidadã que recaía sobre minhas costas e que eu não poderia deixar de enfrentar o desafio de assumir o Ibase. Lá se vão quase 27 anos disto! Quem nos conhece sabe que você sempre foi o meu grande conselheiro. Por sinal, nesta conjuntura de retrocesso político, de desconstituição de direitos e de criminalização de movimentos sociais, de enormes desafios para as organizações de cidadania ativa, perdemos os seus sábios e oportunos conselhos. O que fazer Jean Pierre? Vou procurar em seus escritos inspiração, pois você tinha visão larga.
A vida nos faz correr, até morrer. Correndo, muitas vezes, acabamos adiando e adiando os momentos com amigos e companheiros para tecer cumplicidades políticas. Sinto muito que não estive com você em todos os momentos que poderia, sobretudo quando você ficou obrigado a se confinar em casa por causa da doença. Mesmo assim, lembro, e as lágrimas vem aos olhos, dos grandes momentos de conversa com você. Você foi e é a referência ética para mim. Tanto você como eu, tivemos aquela formação cristã mais radical e progressista, ambos tendo a oportunidade de estudar a fundo a filosofia, que tornava nossas conversas de extremo compartilhamento e cumplicidade de ideias. Além disto, ambos nos inspiramos em Gramsci, eu mais pelo estudado, você mais pela prática junto aos movimentos.
Sinto-me um perdido neste momento. Não ter por perto um amigo como você é perder algo profundo em mim mesmo. Sabemos, você e eu, que a grandiosidade do dom da vida, que começa no nascimento, se completa com a morte. O antes e o depois é uma dúvida existencial. Por mais que queira a filosofia e a teologia das diferentes religiões, a angústia prazerosa do que é viver com consciência, uma sina dos humanos do nascimento até a morte, está sempre presente. Nós nos juntaremos a você. A separação de hoje é apenas temporária. Mas muito dolorida. Queríamos o impossível Jean Pierre, tê-lo sempre entre nós, curtindo bons papos e, porque não, aquele Calvados das barricas de seus tios.
Obrigado por tudo que você nos deu, caro amigo e companheiro Jean Pierre. Descanse em paz!
Até Breve!
Rio, 10 de novembro de 2016. (dia do falecimento de Jean Pierre Leroy)
*Jean Pierre Leroy era filósofo, educador e grandemilitante em defesa das causas ambientais. Foi uma das mais ativas e importantes lideranças na luta por justiça social e ambiental no Brasil, integrando a ONG Fase por mais de 40 anos.