Estamos com o governo interino do Temer – vice de Dilma sob processo de impedimento, mas sem voto direto, diga-se de passagem – que está indo com muita sede ao pote. Claro, não é ele que detém o poder político real, apesar de formalmente no comando. Pelas circunstâncias criadas pelo golpe na legalidade, o poder caiu no colo de tal figura, sem carisma e sem liderança construída na luta democrática. Na redemocratização e na Nova República, Temer sempre esteve presente no palco, mas como coadjuvante, com papéis secundários. Agora, caiu no colo dele a tarefa de enterrar de vez o que ainda resta da Nova República. Como uma marionete nas mãos do grande capital, com subserviência de um Congresso nada representativo da cidadania (pois é constituindo dominantemente pela bancada do boi+bancos+bíblia+bala), Temer está enquadrando o poder político aos ditames do tal sujeito chamado “mercado”. Trata-se de especuladores, jogadores do “cassino financeiro”, mas com poder de fechar a banca ou, melhor, o país.
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Trata-se de um poder derrotado pelo voto,
Política, como prática, é dar direção, organizar o Estado, gerir a administração pública. Sempre como relação tensa, conflituosa, pois processo resultante de disputas entre forças, nem sempre visíveis, com interesses e poderes desiguais, agrupados em polaridades, em blocos históricos muito variáveis. Em democracias, onde – por definição – tal processo de disputa deveria ser vai transparente e aberto, baseado em um método decorrente de princípios éticos compartidos, no lugar da previsibilidade o que impera é a incerteza de pactos provisórios. Assim, sou levado a considerar que as crises, em si, são parte vital do processo democrático. A busca de solução de “crises políticas” quase permanentes – uma espécie de modo de operar das democracias – é o que alimenta a vitalidade das democracias. O problema político e a ameaça à democracia surge quando a crise sai do seu lugar, o espaço público da política e da incerteza, para dar lugar à previsibilidade e o longo prazo das forças dominantes. É o que está acontecendo neste governo do interino Temer, que quer engessar o poder, a democracia, tudo em nome do poder dos 1%, o tal mercado, os detentores do poder do capital, de “gado e gente”, na feliz expressão de um dos maiores líderes democráticos brasileiros, o Raymundo Faoro.
Numa situação como a que estamos vivendo, a democracia caminha para uma ritualização, um processo mais formal do que vital. O poder está capturado, controlado. Trata-se de um poder derrotado pelo voto, pelo poder instituinte e constituinte da cidadania, o único legítimo nas democracias. Caminhamos para uma perigoso aprisionamento da democracia enquanto tal. Seria “normal”, por assim dizer, se conservadores ou, melhor, sujeitos coletivos de cidadania que abertamente defendem agendas restritivas de direitos tivessem ganho hegemonia em processo eleitoral legítimo. Não é diante de uma situação assim que se gerou o governo do interino Temer. Aliás, os derrotados na eleição estão a seu lado. Situação bem esdrúxula, onde o risco para a democracia é maior que a gente imagina, pois atua de forma sorrateira, como foi o processo que tornou possível tal governo.
Mas, mantida a formalidade legal, mesmo ilegítima como neste caso, qualquer governo precisa cuidar de sua imagem, de um imaginário e de um projeto, de um mínimo de aprovação. Como o governo Temer não pode dizer abertamente que é subserviente do grande capital especulativo financeiro, precisa construir algo que dê sentido. O embuste pode tornar-se eficiente quando o governo se sintetiza num lema, num mote, o que sinaliza que é e pretende ser. No caso do governo Temer “Ordem e Progresso”. Isto mesmo, como está na bandeira brasileira. Será que isto pode funcionar?
Os Jogos Olímpicos caíram como uma luva para o
Até o momento, se a gente olhar para o truculento ministro da Justiça, estamos diante de políticas da mais pura repressão em nome da manutenção da “ordem” ou, pior, ela como objetivo social máximo. Trata-se de promover muita “desordem” na segurança pública, tanto quanto a “ordem” exige. O contexto dos Jogos Olímpicos caiu como uma luva para o despreparado ministro da “ordem” até descobrir – criar, na verdade – terroristas no seio da sociedade brasileira. O pior é que já temos uma lei anti-terror que ameaça qualquer opinião e manifestação contra a tal “ordem”.
Mas o pior de tudo é o sentido, a direção do lema. Nada poderia ser mais adequado do que um lema assim para o governo Temer. E foi ele que o escolheu, por incrível que pareça. Ao tomar a cena como marionete, ele revelou o mais íntimo do governo no próprio mote de “ordem e progresso”, como os positivistas extremamente conservadores sempre pregaram. Trata-se, como Aguste Compte, seu grande formulador definiu, de desenvolver a “ordem” através de “progresso”. Ou seja, a sociedade entendida à luz de uma física social, onde leis naturais descobertas pela ciência a mais positiva possível, define qual progresso pode levar à ordem social. Pode existir algo mais conservador? A própria possibilidade de história, de devir, é negada, pois se trata de restabelecer a ordem orgânica do imanente, do contido no fundamento do ser. Diante de doutrina filosófica, sociológica e política assim não existem opções, só caminho único. Erramos, como cidadania, pretender que fosse diferente. Que se restabeleçam a “ordem e o progresso”!
“Ordem e Progresso” é, como o próprio Aguste Comte dizia, uma espécie de religião social. Para ele tratava-se de voltar à “ordem” da Idade Média – ele viveu naquelas décadas criativas, mas totalmente instáveis, após a Revolução Francesa – mas, desde vez, de forma “científica”, baseada numa espécie de ciência física social, instrumentalizada pela revolução industrial capitalista, contra qualquer possibilidade de ilusão metafísica, de sonho de outra humanidade, enfim. O mundo de Comte não é mais o mundo real em que vivemos hoje, em que o próprio capital virou uma espécie de “metafísica” hegemônica, do pensamento único.
A tal “Ponte para o Futuro não passa de
O mote do governo Temer, mais do que de “ordem e progresso”, é de “desordem e retrocesso”. A proposta golpista do PMDB, seu partido, se define como Ponte para o Futuro. Na verdade, não passa de uma reconstrução conservadora de “pontes para o passado”. O verdadeiro sentido do governo Temer é transformar a própria democracia em um mera administração pública, tirando do espaço público a disputa por direitos, políticas e recursos. É emblemático o que o gerentão de banco, o ministro Meireles da Fazenda e Previdência Social, propôs e o governo adotou como a sua razão de ser: acabar com o pacto cidadão da Constituição de 1988, com aquela garantias mínimas em termos de direitos e tecido público de proteção social da cidadania de todas e todos. Pior, acabar com a própria disputa democrática em termos de quem paga – impostos – e de como os recursos serão aplicados – orçamento público federal. A tal PEC 241, que congela os recursos para as obrigações constitucionais de saúde, educação e previdência social, é a legalização da “desordem e progresso” em nome da “ordem e do progresso”.
Termino pensando na história. Isto vai acabar um dia, mas quando? Desde aqui e agora, vou usar de minha militância verbal e escrita, para denunciar e combater o monumental retrocesso que nos está sendo imposto pelas forças dominantes. Mas sei que a tarefa poderá ser longa e difícil. O pior de tudo é o fato que este governo pôs em descrédito a democracia como processo legítimo de reverter tal quadro. Temos que levar a disputa ao terreno que é mais favorável para a cidadania, a rua. Vamos criar as nossas trincheiras aí, mas com estratégia de resistir e nos fortalecer para a ação de movimentos fortes e irresistíveis no amanhã, numa alvorada democrática avassaladora contra os que nos oprimem em nome de uma “ordem e progresso” que nada mais são que atentados contra conquistas de liberdade, igualdade, diversidade e emancipação social. Existe vida afinal, com nossos sonhos e criatividade, e outro Brasil é sempre possível.