Por Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Ibase
Em momentos de crise política como a nossa, o que é mais evidente e visível é uma grande confusão. Os eventos vão do trágico ao cômico, chegam aosurpreendente e retornam ao lugar comum, donde nada mais do que o pior pode sair. Tudo acontece com espantosa velocidade, a cada dia, quase a cada hora. A cacofonia política é predominante. Tudo sai do lugar e, ao mesmo tempo, tudo parece deixar as coisas como estão, sem saída. Ou, ainda mais grave, com saídas que podem ser piores, verdadeiros retrocessos em relação a conquistas democráticas que nos custaram muito. Estamos encurralados, mas algo se move aos nossos pés, difícil de ver e julgar. Como ativista e analista que prioriza a cidadania em seu poder constituinte e instituinte, baseada em princípios e valores éticos da liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação, acreditando na radicalização da democracia como possibilidade de construir uma sociedade justa e socialmente sustentável, reconheço que o momento é de perturbadora perplexidade e angústia. O que pode sair daí? Onde e como incidir para que a crise ao menos nos aponte uma possível trilha a enveredar para construir o caminho para um futuro que ainda poderemos sonhar, ao menos para nossos netos?
Retornei aos meus mestres, em particular ao Antonio Gramsci. Procurei rever sua reflexão sobre o “ocasional” e o “orgânico” nos momentos históricos. Meu objetivo foi buscar lentes mais precisas para olhar sobre o que está acontecendo entre nós. Claro que isto não passa de instrumental analítico, que não dá a solução mas direciona o modo de ver. Afinal, me perguntei, o que temos de orgânico nesta crise? Movimento orgânico, para Gramsci, é uma mudança substancial em curso na correlação de forças políticas numa sociedade dada, num momento histórico dado.
O movimento orgânico entre nós, encoberto pelo que se passa na conjuntura do dia a dia (o ocasional) é um difuso embate hegemônico como projeto de Brasil entre uma proposta que aponta vantagens na adesão ao neoliberalismo capitalista e sua globalização comandada pelas grandes corporações, vista como inevitável, e um desenvolvimento capitalista nacional, induzido pelo Estado e suas políticas, com condicionalidades sociais, numa versão atualizada do pensamento da CEPAL ou keynesiano, dependendo do gosto. Ou, dito de outra forma, entre uma abertura negociada para um desenvolvimento capitalista globalizado a qualquer custo, mesmo subordinado, e um desenvolvimentismo capitalista com alguma autonomia, de tipo “reformismo conservador”, na boa expressão de André Singer, nem que para tanto seja necessário engolir sapos como a aliança do BRICS. De um ponto de vista capitalista, estamos entre opções sobre modos de como construir o capitalismo entre nós. Claro, ter ou não condicionalidades sociais faz diferença, mas não muda a essência de um sistema de produzir riqueza para acumular e não para atender necessidades e demandas da humanidade de viver bem. Porém, por pequena que seja, num contexto democrático – onde o método e o processo prevalecem – isto faz muita diferença sobre as possibilidades que se criam no aqui e agora e para o futuro. Este é o embate de fundo. Claro, embate apimentando pelos personagens que os expressam, elas mesmos pouco expressivas e com pouca legitimidade e liderança.
O problema é que tal disputa de fundo – orgânica – fica encoberta e dominada pela disputa de poder mais imediato. Os interesses e as forças que comandam na conjuntura são o que a história política do Brasil nos deixou de pior: os velhos fisiologismos e patrimonialismos. Temos forças políticas poderosas sem projeto além do próprio bolso, mas que tem sete vidas. Elas se reinventam sem mudar substancialmente, mas para a governabilidade política pesam muito, mesmo sem ter ideias ou projetos para o país, mais além dos seus interesses classistas, setorias e imediatos que o poder pode propiciar. A nossa institucionalidade política, com um bom coração democrático, tem um Estado contaminado pelo fisiologismo e pelo patrimonialismo de privilégios acima de direitos, de privado acima do público, do interesse individual predominando sobre os direitos iguais de cidadnia e os comuns que nos agregam e dão sentido ao viver em comunidade.
Estamos diante da velha conciliação na política em plena operação. De orgânico só tem o fato de ser um câncer que pode nos destruir como país democrático. Como câncer político, que volta a criar as suas metásteses e que precisa de urgente e enérgica ação, nos deixa enorme tarefa de cidadania. Ou começamos no aqui e agora a reinventar a democracia como projeto e processo, ou ele nos matará. Neste sentido, em termos mais orgânicos, no sentido gramsciano, precisamos olhar para além do tsunami político que avança na nossa praia. Precisamos pensar em estratégias e processos de reconstrução para o pós este momento, antes que o impeachment e seu reultado, qualquer que seja, signifique um impeachment mais trágico para a democracia como comum político.
Num contexto assim, a crise só é boa para tais forças fisiológicas e patrimonialistas. É seu momento de força, seu movimento de “ocasião” para nada mudar e servir aos seus privilégios. Mas o fato é que elas nada tem a propor na disputa maior, a não ser a manutenção do próprio poder. Isto contamina a política e toda luta política na nossa conjuntura. É isto que dá espaço ao descrédito sobre a própria política, bem comum democrático fundamental, como espaço de negociação e pactuação para que democraticamente a crise vire oportunidade de nascimento de algo melhor. A política está subjugada pelo fisiologismo e patrimonialismo do “toma lá, dá cá”. O movimento “ocasional” do maior partido, o PMDB, não aponta outra coisa a não ser a manutenção de seu lugar na estrutura do poder. É o mais emblemático no nosso Parlamento, mas está longe de ser o único. Nossa estrutura partidária se esgotou, não serve mais para a democracia. O poder sem projeto de país, que está nas mãos de partidos fisiológicos e patrimonialistas, não vai muito além do que manter o seu pequeno poder, como uma força política necessária que se compõe com quem quer que seja, desde que no poder. Existe tragédia política maior para a democracia que conquistamos do que chegar a tal ponto? Isto é praticamente a única saída do que está ruim e difícil para o pior e, talvez, o desastroso. Isto encobre e adia a disputa de fundo, sem nada resolver.
Enfim, lamento que, ao invés de renovar e aprofundar a democracia, a conjuntura dominada pelos interesses fisiologistas e patrimonialistas – diga-se de passagem, interesses que contaminaram o próprio Governo Dilma e o PT em sua estratégia de se salvar – é nos levar a uma democracia de ainda mais baixa intensidade, tipo o que aconteceu no Paraguai alguns anos atrás. Estou descrente sobre o que a crise atual vai gerar no imediato, pois estou convencido que algo pior ainda está no horizonte.
Rio de Janeiro, 03/04/2016.