Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Ele é pequeninho e ataca sorrateiramente. Mas que capacidade de fazer estragos! O minúsculo mosquito Aedes Aegypti, com sua instantânea picada, pode transmitir dengue, chicungunha e zika vírus, sem a gente notar. E os efeitos podem ser de microcefalia em bebês e até a morte. Ataca sem distinção, pois é cosmopolita, está em todo lugar e investe contra todo mundo. Demoramos muito tempo para constatar que estamos diante de uma enorme ameaça à segurança humana, uma crise humanitária de grandes proporções, enfim. É uma arma biológica sem exército que a usa, ao menos neste nosso desastre de saúde, pois tem a ver com inimigos difusos no nosso seio. Nós criamos condições internas para ele virar um perigo nacional e nos ameaçar neste momento de modo assustador.
Temos muita gente que entende muito deste inimigo da saúde pública. Eu, definitivamente, não sou um técnico a respeito e nem me aventuro a discutir a questão de um ponto de vista técnico. Só sei que temos muito saber e capacidade acumulada para não sermos presas fáceis de mosquito assim. No limite, nem nos faltam recursos para tratar um problema deste. Aliás, teria sido muitíssimo mais barato prevenir e impedir que virasse uma epidemia como é agora. Falta, isto sim, ter a saúde pública como um bem comum fundamental, de todo mundo, sem distinção, sem ideologias, como prioridade absoluta de qualquer política democrática que vise o bem-estar, o bem-viver entre nós todas e todos.
Apesar de, pela história de vida profissional e política, ter me tornado diretor do Ibase e um ativista de causas de cidadania em busca da radicalização da democracia como modo de enfrentar nossos desafios em qualquer área, hesitei muito em me aventurar a escrever sobre esta questão da epidemia provada pelo tal Aedes Aegypti. Ontem, em minha caminhada matinal pelo Parque do Flamengo, me deparei com um grupo de militares, armados só de folheto informativo sobre como combater o mosquito em nossas casas e, sobretudo, como esta luta é, acima de tudo, uma questão de solidariedade coletiva e responsabilidade democrática. Acabei o resto da caminhada pensando no momento de crise que vivemos e esta emergência humanitária que não pode esperar a solução da crise para ser enfrentada. Veio a luz quando vislumbrei que a crise está longe de ser apenas algo político e econômico, ela é um sintoma do quanto a política/poder e a economia/mercado se afastaram da vida real, das esperanças frustradas e dos suplícios enfrentados pela maioria, do dia a dia da cidadania e suas necessidades.
Agora vejo que o próprio mosquito mostra os limites a que chegamos em nosso processo de democratização, curto de uma geração. Avançamos, sem dúvida, com a onda democrática de 30 anos, que agora mostra sinais de crise e exige revitalização. Está evidente nesta crise que não conseguirmos por os bens comuns no centro de tudo, como prioridade sobre tudo, para uma sociedade de bem consigo mesma. Aceitamos e praticamos a ditadura do mercado, das finanças, dos grandes especuladores. Estabelecemos algumas condicionalidades sociais, mas bastou alguma perturbação nos tais mercados para tudo ser posto em questão. Ajuste fiscal, com menos gastos sociais, desconstrução e flexibilização de direitos, privatização, liberalização, enfim, toda uma agenda para servir aos negócios, não para viver neste país, está no centro dos debates. Será que pagando juros estratosféricos teremos dinheiro para algo de bom? Para banqueiros e especuladores não poderia ser melhor!
As crises econômica e política são reais, com falta total de direção, mas é apenas a ponta do perigo. O iceberg que nos ameaça, porém, está escondido nas águas que navegamos neste navio meio sem rumo. Neste quadro, o mosquito prolifera solto e já afetou muitos recém-nascidos, ameaçando uma geração inteira de novas e novos brasileiros. Os hospitais públicos e todo o sistema de saúde está em crise, impedido de fazer o que sabem fazer, mas recursos são negados. Claro, ou nós, cidadania, tomamos a coisa em nossas mãos ou tudo vai se agravar. Esperar soluções donde não virão é se render diante de um monumental desafio que, ouso dizer, é um desafio para revitalizar a democracia de baixo para cima. Engajar-se no combate ao mosquito é, sim, uma questão de solidariedade e de democracia, mas de algo profundamente novo. Talvez este seja o modo de repormos a saúde e o SUS como bens comuns essenciais de nosso viver em coletividade, desde aqui e agora.
Reafirmo aqui que, mesmo com a crise de múltiplas facetas, está ao alcance da mão de nós, cidadania territorializada, a decisão coletiva – como onda democrática – de enfrentar o mosquito para valer e mostrar nosso poder de recomeçar a construir o país que queremos. Onde vivemos e trabalhamos, construindo nossas famílias, amigos, comunidades, associações, nos divertimos (como agora no Carnaval) e… convivemos com o mosquito sorrateiro que nos ataca a todos, está a possibilidade de nos engajar como cidadania, começando por “trincheiras” contra o mosquito e aí avançando para mudar muito mais. Enfrentar o mosquito é uma tarefa essencialmente democrática, de todos juntos, nos dando as mãos, exercendo nossa responsabilidade por direitos que são compartidos com toda coletividade local, o país e o mundo até.
A democracia não é um projeto abstrato, mas é sim uma disputa de projetos de sociedade e, sobretudo, um modo de fazer o caminho para eles juntos, com base em princípios e valores éticos compartidos de igualdade e liberdade cidadão, de diversidade e solidariedade de todos com todos, de participação. Democracia é de algo em permanente construção, desde o cotidiano, que começa em nossas casas e vai para a rua, a escola, o local de trabalho, o bar, a associação, a festa. Este é o fundamento, as instituições e estruturas comuns são derivações da democracia na vida. Desafios para a cidadania e a democracia sempre aparecerão e sempre será possível optar democraticamente pela melhor forma de agir em busca do bem comum. Transformemos o mosquitinho em luta concreta de nos refazer como coletividade democrática. Esta é uma emergência, não dá para adiar ou esperar. Talvez seja a chance que temos para recomeçar, coletivamente, a reconstrução do país posto em crise por nossas elites dirigentes e os donos de conglomerados financeiros.