Por Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Ibase
Finalmente, o calor intenso deu uma amainada e as chuvas voltaram. Muitos, muitíssimos por sinal, de nossos compatriotas gostariam de sol intenso todos os dias – nesta época do ano de baixa intensidade, de férias e pré carnaval – para poder ficar curtindo uma boa praia, um dos comuns fundamentais do Rio e parte da identidade do ser carioca. Bem, o verão já deu muitas chances e voltará a dar dias ensolarados, é uma questão do surpreendente e renovado ritmo da natureza. Está aí um bem comum natural, vivido como tal mas pouco pensado. Só quando aquele câncer da segregação social se impõem é que valentões e racistas não declarados ( e temos tantos!) levantam propostas no sentido das praias serem um privilégio de moradoras e moradores da Zona Sul e Barra. Apesar de tais surtos “privatizantes e patrimonialistas”, ouso dizer que, talvez, é na democrática praia que nós, cariocas, melhor praticamos o sentido mesmo de comuns compartidos. Além disto, todas e todos com corpos expostos em sua diversidade, mas cidadãos iguais a seu modo.
No rastro do que propus para uma agenda cidadã para a cidade em ano editoral, volto aos comuns porque eles são o mais fundamental para refletir e propor como base do nosso viver coletivo no Rio de Janeiro. Meu objetivo, hoje, não é tratar do bem comum “praias”, apesar de sua enorme importância. Temos, pelos documentos de informação turística, 86 Km de praias. Serão todas de acesso livre para quem quiser curtir? Na nossa cartografia dos comuns vai ser fundamental ir a fundo nesta questão. Mas comecei pelas praias para lembrar que elas, um dom da natureza para nós, precisaram ser tornadas comuns, pois não eram, no processo de expansão da cidade. As propriedades chegavam até a praia, como ainda chegam em certos condomínios privados e resorts. Lembro aqui que até o Palácio Presidencial do Catete tinha sua praia privada no Flamengo. Foi Pereira Passos que criou um modelo hoje existente em quase todo o país, o de avenidas entre prédios privados e as prais abertas a todo mundo. No caso do Flamengo, onde está o Catete, a proposta se consolidou definitivamente com a criação de um parque público nos anos 60 do século passado – o Parque do Flamengo, com 1.200.000 metros quadrados, num projeto de Lota e Burle Marx – e a reconstrução da praia uns 100m Baía adentro. Precisamos lembrar disto: comuns são comuns porque os tornamos comuns.
Um exemplo recente de comum construído, resgatado e revitalizado no caso, é a Lapa, no Centro do Rio. Lugar bonito, para ir, ver e curtir. Mas eu mesmo o vi muito feio e degradado no final dos 60 e início dos 70 do século passado. Hoje é um lugar com monumentos de grande beleza arquitetônica, como os Arcos, de boa música, de shows, de bares e restaurantes. Não sei muito como foi o seu passado. Trago a Lapa para a minha análise como exemplo de recuperação de um comum, não como projeto de governos, mas por iniciativa de produtores culturais e jovens combinados, que acabaram tornando a Lapa um centro comum, uma prioridade para a cidade e, portanto, para governos e até empresas. É, hoje, um dos pontos de referência para cariocas e turistas. Sempre dá certo curtir uma noitada com amigos na Lapa!
A Lapa é aquele espaço complexo urbano: um comum, vivido e curtido como tal, que incorpora um incontável número de propriedades e iniciativas privadas – bares, restaurantes, hotéis, casas de shows e muito mais – com uns poucos espaços sob controle estatal, como a Sala Cecília Meireles. Mas é um comum porque aberto a todo mundo e sentido como um lugar comum a se ir na noite carioca. Não são somente os Arcos e a praça em frente ou a feia Catedral que fundamentam o espaço como comum. É o sentido de liberdade presente no ar, a sensação de ser nosso, é a prática de espaço aberto a todos que estão afim de curti-lo, enfim, é nossa relação com esta parte do território que o tornou um bem comum superior, acima da propriedade privada e da estatal. É nosso território, pronto!
Mas por que trazer o caso da Lapa para a nossa reflexão de um agenda cidadã para o Rio? A questão é que os comuns precisam ser criados, vividos e defendidos como tais, pela vigilância cidadã constante, e precisam receber do governo local a centralidade que merecem, sem subterfúgios. É provável que, se nós não levantarmos a questão, os comuns, em particular a Lapa, nem serão mencionados nos programas dos candidatos. Alguém sabe quanta gente curte a Lapa de quarta a domingo? Como funciona e sempre surpreende este comum cultural e territorial? Quem o frequenta?
Bem, podemos começar pelos empecilhos para curtir o comum Lapa. Primeiro a mobilidade urbana. Será que todas e todos jovens que gostariam curtir uma noitada na Lapa conseguem transporte acessível para ir até lá e, não menos importante, voltar de madrugada para o seu canto, sua casa? Ou a Lapa só facilita a vida de quem vive na Zona Sul e os turistas? Afinal, quem dá vitalidade à Lapa e a tornou um comum fundamental foram sobretudo jovens de Favelas, Zona Norte e Oeste, Baixada e Grande Rio. Penso que esta é uma grande questão democrática, um direito de mobilidade fundamental, para poder curtir algo que de melhor a cidade oferece como comum compartido.
Existem muitas outras questões, as quais seria importante cartografar como questões prioritárias de cidadania. Ou alguém duvida que cultura é essencial no se viver em coletividade e que a cultura é um comum criado e renovado constantemente pela participação de todo mundo? A Lapa ainda não foi submetida ao grande negócio, como o Carnaval. Mas ela não está livre disto. O que propor ao nosso governo local para manter a Lapa como espaço essencialmente livre, da liberdade de criar e de curtir a cidade e o que ela nos dá de melhor? Penso que precisamos criar grupos de cidadania interessados no tema do comum, seja a Lapa ou outros, e começar desde já a avaliar fortalezas e debilidades, possibilidades e ameaças, ações emergentes e propostas de estratégias, tudo para cobrar compromissos dos candidatos que querem nos governar.
Bem, a democrática Lapa é propícia para um debate. Como dizia Betinho, é num bar e com um copo de chope que acontecem as mais livres, profundas e inspiradoras análises políticas. Pensando em nossa Lapa, em bares, restaurantes e casas de shows, poderemos, ao mesmo tempo, resgatar nosso papel de instituinte e constituinte de citadina, fazendo esta cidade ser nossa plenamente. Pode existir coisa melhor?
Rio, 24/01/16