Cândido Grzybowski, sociólogo e ex-diretor do Ibase
O momento que estamos passando é de enormes ameaças, numa combinação de agressões e ameaças, de rupturas e desmontes, de perdas de imaginários mobilizadores, com recrudescimento de estranhamentos e intolerâncias, do local ao mundial. Para onde vamos? Ainda é possível mudar? Como? Nós, os mais avançados em idade, que legado vamos deixar para as novas gerações? E elas, que sonhos alimentam diante desta tragédia|? Qual o futuro com que sonham ser possível para si mesmos e a humanidade, neste maravilhoso planeta que nos dá vida?
As questões são muitas e as respostas nada simples. Mas, sobretudo, temos o desafio de descobrir juntos e juntas caminhos enquanto caminhamos, acreditando que o impossível sempre pode se tornar possível. Confusões e dúvidas podem ser sementeiras de um novo modo de ver e entender. Sim, é de novos modos de pensar que se trata, repensando o já pensado e ressignificando o que já parecia serem certezas para nós e para as nossas redes de afetos e cumplicidades políticas.
Mas não dá para ignorar o profundo desconforto que as rupturas, desmontes e desencontros nos causam. Os sinais apontam para várias direções. Temos sinais de barbárie em curso , mas também de novas formas de solidariedade, convivência e compartilhamento. São movimentos contraditórios e que geram uma sensação de impasse. No conjunto, o que a cada dia fica mais evidente, é que o neoliberalismo é um forma de acumulação capitalista e dominação absoluta a favor de 1% dos privilegiados, sem regulação ou limites. Todas as mazelas do capitalismo que se baseiam na exploração do trabalho, com uma visão extrativista do planeta e destruição da integridade dos sistemas ecológicos do planeta, acabam fomentando e se valendo do patriarcalismo, racismo, imperialismo, colonialidade e guerras, de uma forma globalizada, exacerbada ao extremo. Temos pandemias, apartheids, intolerâncias, milícias, desinfomação, direitas e nacionalismos excludentes e violentos, criação de periferias em meio a abundância, famintos desesperados e migrantes aos milhões tratados como párias. Estamos assistindo diariamente a uma desenfreada disputa do que “sobra”, dos comuns humanos, os territórios e seus recursos, o saber e a cultura. Até quando?
Felizmente, temos poderosos sinais que brotam em todas as partes carregados de novas sensibilidades e buscas. Como valorizá-los em propostas potentes para a transformação de tudo? Esta é uma prioridade e uma preocupação. A proposta é ressignificar e dignificar o papel transformador de nossa ação, de cidadania em ação, para uma verdadeira revolução democrática ecossocial, de direitos iguais para todas e todos, no cuidado mútuo, com solidariedade, convivência e compartilhamento, para vidas que merecem ser vividas plenamente. Claro, no imediato nos deparamos com a invisibilização a que estão submetidos nossos olhares pelo modo de vida barbarizado pelo mercado promotor do mais exacerbado capitalismo neoliberal global e toda sua estratégia de impedir imaginários questionadores. Trata-se de um câncer que ameaça de morte a humanidade inteira e o planeta único que nos dá condições de viver. O cuidado, a convivência e o compartilhamento não tem lugar no modo de dominação é exploração deste capitalismo e da civilização eurocênctrica e imperialista, machista e patriarcal, colonialista e racista, profundamente discriminadora e violenta que alimenta seu modo de ser. Temos uma tarefa hercúlea para tornar o cuidado, a convivência e o compartilhamento como princípios organizadores do viver como membros da coletividade e do território que compartilhamos.
Não penso que a construção dos caminhos democrática e ecossocialmente transformadores que precisamos seja uma tarefa fácil e curta. Só penso que é ainda possível e é inadiável, sem medos, evitando a barbárie que está aí. Obstáculos existem e muitos, eles não podem ser ignorados. Mas temos que começar por identificar as brechas em nossa busca dos comuns a fortalecer. Poderemos encontrar surpresas e nos encantar, motivando-nos para seguir buscando. Ao menos tentar, por dever e condição, garantir direitos de existir. Mas precisamos estar de acordo no ponto de partida: não são possíveis situações, processos e bens comuns para viver sem valores e princípios éticos compartidos, onde o comum é tornado comum pela ação coletiva consciente.
Aqui cabe a pergunta: por que trazer este debate no momento, nesta conjuntura brasileira tão difícil que atravessamos, com eleições estratégicas pela frente? De cara afirmo e reafirmo que é fundamental derrotar o “inominável” e o projeto bárbaro em termos democrátios e ecossociais que ele e o “bando” que o respalda representam. Também não tenho dúvidas e não escondo meu apoio e ativismo para o Lula como a real e a única possibilidade democrática que temos nesta conjuntura. Mas ter isto como passo e mudança fundamental, no que estou querendo compartir nesta minha reflexão e análise, não pode nos iludir sobre os desafios que teremos pela frente. Sei que é desconfortável chamar atenção dos enormes “vazios” e “ausências” nesta conjuntura, quando precisamos urgentemente derrotar a ameaça que representa um possível continuidade da monstruosidade destrutiva liderada politicamente pelo bando de milícias, polícias e Forças Armadas, com concepções antidemocráticas e fascistizantes, segredadoras e violentas.
Uma primeira e fundamental questão: o que significa resgatarmos a democracia? Estamos em conjuntura eleitoral e a proposta é defender a democracia que temos? Esta nascida em 1988 e que aceitou o cancer da “conciliação política” como modo de ser democrático e que nos levou á tragédia em que estamos mergulhados? Ou buscamos restaurar a democracia como força cidadã transformadora? Afinal, democracia antes de tudo sinfica radical e simplesmente o poder do povo! A força de democracia está ancorada na cidadania ativa, consciente dos direitos e convicta de seu poder. Claro, não existe democracia sem uma correspondende institucionlidade legal e poder definidos, sempre passíveis de transformações para melhor. Democracia viva e significativa supõe cidadania ativa, em sua enorme diversidade, engajada e sempre presente. Para isto, a cidadania ativa exige imaginários mobilizadores e irresistíveis por mais e mais, rompendo sempre com os limites do considerado possível. Democracia é tornar possível o antes impossível, pela ação da cidadania. Claro precisamos votar, mas não só em eleições. Precisamos participar e ser ativos em todos os momentos. Este é o segredo da democracia: ser um modo de fazer conquistas de direitos, políticas e promover as necessárias transformações, sempre pautadas pelo bem comum. Aliás, bem comum que não tem limites, em termos de imaginários, mas que exige ação, motivação, capacidade de não desistir de lutar. Mas limitar o exercício da democracia ao voto, como se isto bastasse, é nos enganarmos. Democracia não é um fim em si mesmo, mas o modo de agir coletivo para os fins que conseguirmos acordar e que o voto define como objetivos majoritários, sempre revisados e renovados. Neste simples fundamento reside o poder transformador ecossocial de relações, estruturas e processos coletivos da democracia.
Dar o voto numa eleição é o começo e não o fim em si mesmo. É apenas parte do processo. Vejamos a situação em que nós estamos mergulhados sob ameaças de uma direita com aspirações fascistas e que não dissimula a sua vocação violenta de eliminar quem não concorda com ela, atropelando tudo, mesmo a Constiuição conciliadora, que suadamente conquistamos mais de 30 anos atrás, as políticas inclusivas limitadas e nossas frágeis instituições. Deu para celebrar, mas era apenas um começo e não o fim. Fomos atropelados e agora ameaçados de barbárie novamente. Vamos votar, sem dúvida. Mas onde estão as cidadanias ativas em sua diversidade de vozes, as mobilizações que criam entusiamo cidadão e os debates acalorados sem fim?
Vejo a conjuntura eleitoral sem tais evidências que podem apontar esperança e transformação. Não há dúvidas sobre a barbárie que nos ameaça. Isto não! As dúvidas são sobre o que buscamos além de adiar a barbárie de uma possível reeleição com catástrofes já sabidas. Afinal, parece que não acordamos para a questão racial, para a questão indígena, para a questão climática e a destruição sistemática da natureza que nos cabe cuidar, para a violência sistêmica, com suas milícias não tão clandestinas, para o rearmamento do cada um por si e de quem pode, pode. Cadê as questões da segregação e da dominação e violência contra as mulheres? As questões são muitas e parece que a busca da vitória as inviabiliza. A vida me ensinou que sonhar e acreditar, qualificando e significando isto, tem enorme poder transformador. Sim podemos, mas precisamos querer!
Termino lembrando o que aconteceu no Chile e na Colômbia, onde o “sim podemos” venceu algo que parecia inimaginável. Claro, isto é apenar um começo. Mas as cidadanias ativas fizeram as vitórias nas urnas e dela depende a efetividade do que acontecerá em termos de conquistas e transformações. Fico encantado ao pensar na proposta da vigorosa mulher afrodescendente, a Francia Marques, que a levou com longo ativismo, ao centro do poder na Colômbia, como vice-presidente de Petro, outro corajoso e obstinado ativista desde a juventude. Francia propõe o “Viver Saboroso” para todas e todos, algo em processo e sem limites. Isto é o que precisamos voltar a ter no Brasil: almejar um viver saboroso!