Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Já cansei de tentar entender os movimentos erráticos da conjuntura política. Tudo se move para todos os lados. Uma confusão só, pois ninguém no centro das disputas, da situação ou oposição, sabe para onde ir. A ocasião é para os oportunistas de plantão, com seus pequenos interesses, com iniciativas de desconstrução de direitos, instituições e políticas, uma verdadeira ameaça para a institucionalidade democrática, que foi difícil de conquistar. Ganham fundamentalistas religiosos, com suas agendas nada republicanas contra o Estado laico, a agenda igualitária, sem discriminações, os direitos de minorias desfavorecidas. Ganham, também, os defensores de poderosos interesses corporativistas, como do agronegócio, da mineração, da bala e da repressão, do funcionalismo. Tudo na mais descarada negociação do “toma lá e dá cá”, apesar de investigações como a Lava Jato. Digo e reafirmo, estamos numa profunda crise de hegemonia, onde há, sim, forças políticas e disputas, mas lhes falta legitimidade, falta a elas uma direção política, uma afirmação de projeto de país que dá sentido e rumo. Talvez o clamor mais claro das ruas – por sinal, elas mesmas uma grande erupção confusa -, de um lado e outro, é a contestação da representação política.
Em um quadro assim, o melhor a fazer é refazer caminhos e ousar, ao menos tentar pensar olhando o amanhã. A agenda do pós-crise política, pós-crise econômica, pós-turbulência global, pós-tudo o que temos no dia a dia, tal agenda só aparecerá se começarmos trabalhar nela a partir de hoje, no meio desta confusão. Precisamos pensar para além das más notícias que nos invadem diariamente. Precisamos esquecer momentaneamente das agruras cotidianas com contas que crescem e salário que não espicha ou, pior, que acabou. O momento é difícil, mas é em tais ocasiões que o novo pode ser gerado e nos dar alento, esperança, sentido de lutar.
Como ativista e analista de conjuntura, tomei distância e estou tentando definir meus pontos, minhas prioridades. Claro, preciso discutir com meus pares, com as redes sociais com as quais estou conectado, com meus parceiros e cúmplices de muitas jornadas. Nada disto ainda aconteceu. Vou, porém, ousar fixando uma agenda, nem que seja algo para me orientar como ativista e diretor do Ibase. Se provocar debate já será um bom começo. São questões que, penso, necessariamente, devem integrar um novo imaginário democrático mobilizador, mas não são exclusivas e nem definidas numa ordem de prioridades.
Uma grande questão tem a ver com as mudanças objetivas na condição de milhões de brasileiros e brasileiras nas últimas três décadas. Saímos daquela situação de “insuficiência estrutural”, onde faltava tudo – trabalho e renda; comida suficiente para não sentir fome; uma escolinha para os filhos, mínima que seja; direito de votar e ser contado na balança do poder, mesmo se analfabeto; acesso a bens de consumo mínimo, que amenizam a vida, entre outros. Integramos milhões no consumo, que faltava, sem grandes mudanças estruturais. Fizemos mais do mesmo desenvolvimento capitalista, mas com algumas condicionalidades sociais, redistribuindo parte do crescimento. Isto foi até bom enquanto durou, mas é estruturalmente e ambientalmente insustentável. A tal ascensão de milhões à classe média é uma balela, pois nenhuma mudança significativa na estrutura de classes ocorreu. Os ricos também ficaram mais ricos com o crescimento econômico. E a desigualdade social de classe, de gênero e étnica continua como uma espécie de lei pétrea nas relações sociais de nossa sociedade, de origem escravista. Mudamos de patamar, mas não de qualidade social, por assim dizer.
Integrar no consumo não é gerar automaticamente mais cidadania. Falta cidadania nesta história. Esta é uma grande questão para a democracia brasileira e para as transformações estruturais necessárias. Só com mais cidadania ativa, com mais gente tendo identidade e voz autônoma, é que a nossa sociedade poderá realizar o grande encontro consigo mesmo e ter a base fundamental para avançar na construção de uma sociedade mais democrática, justa, social e ambientalmente sustentável. Milhões que se integraram ao consumo não ascenderam à cidadania plena. Falta trabalho de base, falta organização de cidadania ativa, faltam lutas sociais, isto mesmo, lutas, resistências e insurgências, de todas as cidadanias, de todas as identidades. Isto é base da democracia. Não precisamos mais de bandos ou seguidores submissos. Precisamos de mais autonomia, mais vozes, mais de cacofonia, pois é isto que dá vitalidade à democracia. Aliás, isto está até acontecendo em diferentes partes do país, mas não é considerado ou reconhecido pela sua importância estratégica. Como dirigente de organização de cidadania ativa, o Ibase, considero esta questão uma prioridade para a sociedade civil brasileira neste momento de crise e necessidade de superação.
Uma segunda questão, estreitamente ligada à primeira, é apostar em movimentos de cidadania irresistíveis, que possam atuar como fermento transformador da política democrática em nosso país. A representação política partidária atual chegou a seu limite. Ela perdeu legitimidade diante da cidadania. Sem dúvida, ela é legal, pois eleita, e até opera com suas agendas descoladas da cidadania. Mas aí reside grande parte da crise política atual. Cunha e Renan, na liderança da Câmara e do Senado, são a expressão mais emblemática da crise de hegemonia, acima sinalizada.
Estamos diante da necessidade de resgatar a política enquanto tal. Trata-se de um bem comum, perigosamente controlado por interesses privados. Afinal, o centro da democracia é transformar os conflitos em força de transformação e construção contínua. Ela faz isto ao tornar a política o espaço republicano por excelência, o bem comum simbólico de toda a cidadania, por assim dizer. A privatização da política por interesses privados, corporativismos e fundamentalismos, destroi o bem comum que é a política como arena de disputa dos diversos, se reconhecendo mutuamente como detentores dos mesmos direitos. Uma reforma da política está léguas além da pífia reforma em curso no Congresso e, até, das propostas sendo discutidas na própria sociedade. Este é um tema estratégico numa nova agenda. Alô ativistas políticos, sejam ousados para renovar profundamente a democracia!
Um terceiro ponto da agenda – que pode ser o primeiro, pois todos são interligados – tem a ver com as reformas estruturais. Não vou entrar em detalhes, mas de um ponto de vista de democracia radical, buscando justiça social e ambiental, um conjunto de reformas se faz inevitável e, mais, é central para um imaginário mobilizador. Comecemos por direito ao trabalho. Numa sociedade urbanizada como a nossa, com uns 90% vivendo em cidades, a questão de ter um trabalho é de vida ou morte. Não pode, não é admissível em democracias, que uma política econômica não tenha esta questão como prioridade incontornável. Tudo deve ser feito para o pleno emprego. Afinal, nossa sina como humanos e nossa possibilidade de aspirar à autonomia, hoje, é ter um trabalho decente, seja como empregado, como autônomo, como micro empreendedor, como agricultor familiar, como criador cultural. Não pode existir plano econômico ou ajuste acima disto. Economia e finanças não podem ter sua autonomia em nome da acumulação. Prioridade mesmo é servir ao bem viver de todos. Isto implica em repensar profundamente nossas já velhas propostas de Reforma Urbana e Reforma Agrária. Elas são necessárias, mas ideias são velhas, incapazes de mobilizar e apontar um rumo.
A agenda estrutural envolve um grande conjunto de questões. No momento, o mais imediato é um projeto de país. Estamos ainda com o fantasma da grande nação definida no tempo de Geisel, de crescimento capitalista a la chinesa. Tal desenvolvimentismo nem na China está funcionando mais. Precisamos repensar as bases.
Por que não trazer ao centro o que pode ser uma economia que faz sentido à cidadania? Que tal, ao invés de priorizar a indústria automobilística, incapaz de resolver a enorme demanda por mobilidade social, sobretudo nas nossas cidades, por uma indústria voltada ao transporte coletivo de grande eficácia, como trens e metrôs. Isto teria fantástico impacto em nossas cidades, mas também no transporte de cargas, feito hoje sobretudo por caminhões. Quanto de emissões de CO2 – uma das principais causas de mudança climática – evitaríamos em consumo de combustíveis fósseis? Ao mesmo tempo, atenderíamos uma das demandas mais centrais da cidadania, de mais mobilidade como direito coletivo.
Além da mobilidade social, onde inverter e inovar pode fazer uma enorme diferença de milhões, precisamos voltar às agendas de universalização da saúde e educação. Não é através de planos de saúde que vamos sair da desastrosa situação. O SUS ainda é a melhor solução e a mais barata de um ponto de vista econômico. Só não veem isto os grandes interesses econômicos e corporativos ligados à saúde. No que se refere à educação, parece que teimamos em não ver que aí, em termos de futuro, é uma das principais bases para enfrentar a desigualdade estrutural. Afinal, melhor do que nascer com desiguais heranças financeiras, o melhor é garantir igualdade no acesso ao saber, bem comum da humanidade, que só faz crescer com mais gente tendo acesso a ele. Educar é, também, construir cidadania. Ou seja, aí está uma questão estratégica, sem dúvida.
Olhar para além da fumaça da conjuntura é um esforço de não se deixar levar. Outro Brasil é possível. Mas precisamos agir desde já. Por favor, precisamos engrossar tal onda. Todo mundo precisa contribuir com suas análises e propostas.