Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Estamos numa conjuntura política e econômica de muita confusão em palácios, congressos, bolsas de valores, nas diretorias de corporações, na mídia dominante, nas universidades e centros de referência, nos grandes movimentos sociais, nas centrais sindicais, nas organizações de cidadania ativa, nas igrejas. Vivemos um daqueles momentos históricos em que o pensado e o definido, um, dois ou mais anos atrás, não servem mais. Mas o novo olhar nem sabe para onde olhar, tateia hipóteses. A crise é real, mas parece que ninguém sabe o que fazer no campo da grande política e diante de uma economia dominante patinando e desmilinguindo. Há muitos desencontros, choques entre figuras públicas pegas com a mão na botija, conluios de verdadeiras raposas da política e uma falta total de ideias capazes de encontrar uma saída. Uma verdadeira crise de hegemonia, de falta de rumo e de sujeitos com capacidade de apontá-lo, como tenho afirmado em diferentes momentos.
A vida, porém, segue, mesmo com desemprego, inflação e salário curto, mais para uns e umas do que para outros e outras. As últimas denúncias de roubos na Lava Jato e a descoberta de novas manobras escabrosos no centro do poder até parecem normalidade. O pior é o insuportável blablablá dos que tentam formar nosso modo de pensar a respeito das notícias que eles selecionam através de jornais e da televisão e que invadem nossas casas. Sorte que nos sobram as redes de informação que, como cidadania, organizamos com base nas novas tecnologias. Mas aí entramos num terreno anárquico total, mais invasão de informação sem muito critério, do que espaço de construção de outro pensar. Este nosso espaço pode ser fundamental na construção de um novo imaginário mobilizador. No entanto, a travessia em mar revolto é longa e incerta, como é próprio de democracias.
Mas, apesar de tudo, algo continua funcionando e que nos permite ir levando. Falo do nosso cotidiano, pois, apesar de tudo, vamos vivendo. Se fosse possível registrar os milhões de trocas entre pessoas, que acontecem a cada momento e que fazem a vida andar, iríamos descobrir que vivemos numa grande teia de relacionamentos cotidianos. Isto significa que algo fundamental, fora dos debates, funciona como uma infraestrutura social da vida, quase como um automatismo social, sobre o qual nem pensamos a respeito. Esquecemos de transformar isto em questão central para avaliar nossa qualidade de vida. Claro, já falamos e muito de um aspecto, o da mobilidade no território que compartimos entre muitos, o ato de mover-se na teia existente e das dificuldades que encontramos ou das soluções que ainda não criamos, pois isto parece dependente de algo distante, a política e a economia.
Um nodo na rede social é a nossa casa, nosso endereço e nossa privacidade. Parece que nos isolamos, na verdade estamos conectados à teia social que funciona silenciosamente, com muita gente por trás. A energia elétrica ilumina e resfria a nossa casa, a água sai nas torneiras e no banheiro, rede de telefones, internet e televisão até invadem a nossa casa. Dormimos protegidos pelo entorno e pelos aparatos sociais que uma grande cidade cria. De manhã, cada um e uma da casa se apronta para a sua inserção mais pública, entre carinhos, troca de ideias e até desencontros inevitáveis. A gente sai e entra na rede de mobilidade urbana que nos leva para muitos lugares, trabalho, escola, supermercado e aí vai.
Quem sai de carro pensa que está só, no seu casulo mecânico, sonho de mobilidade, mas com horas em engarrafamentos cada vez maiores, andando mais lentamente que os bondes puxados a cavalo de antigamente. Só que os carros são quase uma materialização geográfica da teia e todas as suas conexões. A eles se juntam os ônibus, um tanto desconfortáveis mas sempre surpreendentes, pois são os coletivos que nos conectam apesar de tudo. Temos o metro, os trens e, no caso do Rio, as barcas. Dizer que tudo funciona nos trinques é demais, mas funciona e chegamos a algum lugar. No caminho humanizamos a teia social com troca de olhares, sorrisos, abraços com amigas e amigos, saudações com conhecidos. Aí nos sentidos dentro da teia. Nem pensamos na batalhão de gente que opera tudo nos passando esta sensação de mobilidade.
A gente poderia se estender nas constatações do como funciona a rede no cotidiano. Mas o que gostaria destacar aqui é o contraste entre o cotidiano e a tal grande crise política e econômica. Vendo nosso cotidiano funcionar nos esquecemos da crise distante. Fatos de rupturas na teia do cotidiano acabam sendo, no imediato, muito mais importantes: acidentes, violências, roubos, espertezas dos que querem tirar vantagem, a usurpação por interesse privado do espaço bem comum vital para existir a teia social que nos permite viver, o desrespeito pela teia jogando lixo por aí. São gestos, práticas, movimentos de cá para lá, de lá para cá, para os lados, tudo misturado.
A questão que fica é sobre o lugar que isto ocupa na reflexão sobre democracia e, especialmente, economia e poder. Fica normalmente relegado, deixado para lá porque irrelevante em termos de valor econômico e para o poder. Mas, pergunto, não é o que mais conta para a vida poder ser vivida, em última análise? Há um contrato social implícito na teia social para ela funcionar. Claro, temos a moeda como explicitação de tal contrato. Não passa de um papel, mas que media muitas relações fundamentais do cotidiano, da tal teia. Considero a moeda um bem comum econômico fundamental para o contrato social da teia da vida, hoje em dia. Mas a moeda não dá conta de tudo. Por exemplo, o princípio implícito do convívio é condição para a teia funcionar, caso contrário seriam rupturas a regra. Que valor é dado pela economia e pela política ao convívio? E o que dizer do princípio de compartilhar? Afinal a teia funciona porque é compartilhada entre todos e todas que entram nela. Que valor lhe damos? Tem mais: o cuidado coletivo com a teia. Nada funcionaria se os milhões de pessoas que entram na teia não cooperassem com ela, cuidando-a.
Tenho pensado nestes princípios de vida social para repensar a economia. Economia como gestão da casa, na sua origem grega, é um conjunto de regras para garantir a vida. As regras implícitas do cotidiano de cuidar, conviver e compartilhar são tão centrais na vida que não podem deixar de ser centrais na economia e no poder que a regula. Mas não é disto que se fala quando falamos de crise fiscal, de inflação, da crise da política e da falta de rumo claro para o país. Como seria a nossa sociedade se nossa atenção fosse dada para conscientemente edificar economia e poder a serviço da teia social que nos permite viver? Não seria mais humana, mais democrática e mais sustentável? Que seria uma fantástica mudança de prioridades, isto tenho certeza. Claro, a relocalização de tudo o que for possível e o que é mais substantivo em termos de economia e poder, fazendo-os funcionar para potencializar a teia da vida local seria uma revolução no sentido da democracia radical. É claro também que subsidiariamente precisaríamos de esferas representativas superiores, só para decidir e encaminhar o que extrapola o local. Afinal, a vida se faz no dia a dia, em nossos cotidianos.