Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Sinto um mal estar nesta nossa conjuntura do processo democrático. Após 30 anos de democratização do Brasil perdemos o rumo. Não estou me referindo a este ou aquele grupo, movimento ou força política em particular. Falo do essencial que é para a vitalidade democrática o buscar, construir e propor projetos de mudanças substantivas, o ter imaginários mobilizadores com base em princípios éticos e valores comuns da democracia, sabendo que há variantes políticas estratégicas sobre como tudo pode e deve ser realizado. O país ficou maior e mudou, mas não estamos preparados e nem engajados para enfrentar os novos desafios, desafios estes que a própria democratização, impulsionada por nós mesmos, acalentou. Estamos em mar democrático revolto, sem saber para onde navegar. O mar é nossa política, com uma tempestade armada pela desorientação dos principais dirigentes, de situação e de oposição, dando lugar ao oportunismo da baixa política, com líderes sem legitimidade, botando suas agendas pequenas para tumultuar o ambiente, mas incapazes de apontar o horizonte possível. Só falta aparecer um louco salvador da pátria, pois momentos assim são os que os gestam e é o que eles esperam. Prezemos a institucionalidade democrática duramente conquistada e, com todas as forças que nos restam, evitemos aventuras salvacionistas. É preferível sofrer no mar revolto, sem saber o que será do amanhã, do que enveredar nos caminhos, aparentemente luminosos, que atropelam o debate democrático.O momento é para voltar a sentar em volta de uma mesa, no bar, em casa, na praia, no próprio trabalho, e debater exaustivamente. Debater, debater, até que fique repetitivo e tarde e só resta definir dia, hora e local para voltar a se encontrar e debater. Voltar aos nossos grupos e círculos de cidadania, uns animando os outros, num esforço de não nos deixar desanimar, de não sucumbirmos à conjuntura, é uma necessidade democrática no momento. Saúdo os grupos e coletivos que estão surgindo como cogumelos, pois a saída é por aí. Trata-se de fazer trincheiras, como gosto de dizer. Se for para nos consolar mutuamente já vale, pois revela que ainda não desistimos, apesar de fragorosas derrotas que estamos sofrendo nesta estranha conjuntura. Não esperemos por dicas de partidos ou daquele triste espetáculo de acusações, golpes baixos e traições em que se tornou nosso Parlamento. Daí nada virá mesmo.
Perdemos laços de cumplicidade política ao longo do processo. Pior, deixamos nossos sonhos de um possível melhor do que está aí ir perdendo capacidade mobilizadora. Refluímos para uma troca impessoal nas redes digitais, ganhando em rapidez e volume de comunicação, mas perdendo em imaginário e densidade de reflexão e, sobretudo, o sentido do encontro e do abraço amigo, que dá alegria, força e humaniza a política e a luta democrática. Pior, achamos que o processo político dominante, bem ou mal, estava atendendo aos nossos anseios maiores. Ledo engano! Nossa vigilância cidadã é insubstituível. Precisamos exercê-la sempre, em qualquer conjuntura. Voltar a nos encontrar hoje é uma tarefa que não pode esperar. Porém, voltar a nos reunir e debater implica em saber lidar com uma nova realidade. Como tornar as redes mais amigáveis e elas mesmas instrumentos para alimentar sonhos mobilizadores, encontros reais mais densos, mais consequentes em termos de engajamento na luta política?
Vejo que estou transformando minhas angústias de ativista em proposta coletiva, para a cidadania. Tenho ainda muito amor pelo nosso Brasil e muita energia, mas com 70 anos só posso ajudar pensando e animando diálogos, organizando pequenos coletivos e ajudando na formação de redes e fóruns. Para fazer passeatas e fugir da polícia me faltam pernas. Tive a chance na vida de conhecer, de ser amigo e de compartir cumplicidades cidadãs com figuras de peso como professores, intelectuais, ativistas, que se engajaram e deram a vida para tornar nosso mundo melhor. Não vou nominá-los aqui, pois corro o risco de esquecer uns quantos e umas quantas. Aprendi a praticar radicalmente a liberdade de pensar e agir, de trocar dialogicamente com respeito ao saber e às propostas dos demais, da diversidade social e cultural de sujeitos no meio em que nos tornamos cidadãos de direitos e responsabilidades compartidas.
O conhecimento político e estratégico, como todo conhecimento, só se cria e renova coletivamente. Trata-se de um bem comum político que se desenvolve pela participação engajada e pensada. Penso que dar atenção coletiva, cuidadosa e compartida ao pensar estratégico da política é a prioridade do momento. Trabalho ousado e até penoso por certos momentos, mas gratificante. Exige dedicação paciente e tempo, anos, talvez décadas. Ou será que minha própria história enviesou o meu olhar sobre a conjuntura e por isto mesmo não vejo outra saída?
Mas como fazer face ao que nos é martelado diariamente na mídia televisa, nos grandes jornalões, nas rádios, nas conversas que ouvimos por aí? Será que a única agenda é o ajuste do Levy, o Lava Jato, a corrupção, o impeachment de Dilma, a fragmentação da maioria governamental, as bravatas de Cunha e Collor com um Congresso perdido na tempestade, a reforminha eleitoral, o oportunismo da redução da maioridade penal, o fim de fator previdenciário e a correção das aposentadorias, o destempero de Lula diante da crise, o Congresso do PSDB “perdido como cusco em procissão”? Onde, em tudo isto, está a Política (com P maiúsculo)? Estamos sendo levados a discutir o varejo e não o essencial.
Não existe democracia acabada, sempre há uma democracia por fazer, pois democracia é essencialmente o processo de construção sustentável de uma sociedade justa, includente, participativa, de bem consigo mesma, coisa a ser reinventada a cada conjuntura. Quais dos debates atuais têm a ver com isto? Nenhum! Não estamos discutindo nosso futuro a partir de dificuldades e possibilidades do aqui e agora. Estamos mergulhados em confusões, na fumaceira de escaramuças fisiológicas em busca das vantagens que o poder dá, exclusivamente. Falta generosidade em quem está à frente da política neste nosso querido país, tornando mesquinho, sem rumo, esfumaçando o debate essencial para avanços na democracia. Não sofremos na longa luta contra a ditadura e por democracia para chegar aqui apenas. Nosso sonho era muito maior. É ainda?
A grande questão é como sair do impasse que está dado na conjuntura. Ajuste não mobiliza, pelo contrário. Golpismo até pode mobilizar, mas isto se nossa derrota é tão grande que nem sabemos reagir como democratas, pois a pior saída é um atropelamento da institucionalidade, neste momento. Diante deste quadro, temos que ter ousadia e urgência, sem perder a paciência que a pedagogia política exige. Precisamos investir no imaginário mobilizador. Trata-se de identificar a agenda estratégica possível e viável, o debate necessário para a cidadania se mobiliar e decidir. Já tivemos o desenvolvimento nacional dos anos 50 do século passado, a revolução com reformas de base do início dos 60, a luta contra a ditadura e pela anistia, a “diretas já”, a constituinte, a reforma agrária, o combate à fome e à pobreza, a luta por igualdade na diversidade, as cotas.
Mas… ficamos no caminho e baixamos a guarda. A realidade conservadora e desagregadora nos caiu nas cabeças e no cotidiano da vida de modo radical. Isto não tem força para nos tirar de um momento de crise de hegemonia, de falta de um projeto hegemônico. Mas tem muito de antidemocrático e de frustrante. Daí o mal estar.
Voltar a construir trincheiras, agora de sentido novo, me parece fundamental. A missão, por assim dizer, não é defender mas, pelo contrário, criar forças em que a resistência é um momento de se fortalecer visando a mudança. Precisamos criar sonhos e utopias que nos agreguem e mobilizem. Esperar que isto venha dos partidos e das esferas oficiais está se revelando um erro estratégico. O momento é nosso, da cidadania ativa, exercendo o seu papel instituinte e constituinte, tomando total iniciativa em sua autonomia. Certamente, algo que está totalmente ausente, nosso sonho, nosso ideário enfim, será mobilizador se resolver a equação de como construir democraticamente uma sociedade que seja socialmente justa e, ao mesmo tempo, ambientalmente sustentável. Ou seja, temos que repensar a democracia como estratégia de construir sustentabilidade ambiental ao mesmo tempo que constrói sustentabilidade social. Isto implica em pensar democraticamente a economia que uma sociedade justa e ambientalmente não destrutiva necessita, para nós, nossos filhos e netos e para o planeta humano que compartimos.
Nota: Como entro em férias, provavelmente a regularidade de minhas crônicas será quebrada. Mas quero continuar a escrevendo, sem as pressões do dia a dia.