Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Rio de Janeiro, 11 de maio de 2015
No momento que vive o país, talvez a única certeza seja a incerteza, o mal-estar, o desconforto com a situação política. O clima político está carregado, e mais por falta de perspectivas do que por eminência de alguma ruptura institucional. Nem estamos num momento virtuoso de disputa democrática de rumos, construtor e legitimador de hegemonia. O que melhor define tal situação é a crise de hegemonia democrática, que leva a própria democracia a um impasse. Há uma paralisia, apesar do muito barulho, dos panelaços e manifestações cacofônicas ao oportunismo de forças políticas, que se preocupam mais com a própria sobrevivência em meio ao turbilhão do que no bem-estar social, viabilidade e sustentabilidade do Brasil. Os verdadeiros “bandos” que sustentam Cunha, na Câmara, e Renan, no Senado, mostram quanto fisiologismo, corporativismo e oportunismo tomaram conta do Congresso Nacional e da política.
A questão mais imediata da conjuntura é o que faltou no processo eleitoral do ano passado: um confronto de propostas e ideias sobre a situação, desafios, possibilidades e limites, indicado claramente os caminhos viáveis para os eleitores. O clima de insatisfação vem de antes e ele não influiu no processo eleitoral. Basta lembrar aqui o estouro da cidadania de junho de 2013. Nenhuma força política e nenhum candidato captou o sinal vindo das ruas, por mais direitos e mais democracia, vendo exatamente nos políticos e, genericamente, na representação partidária, sindical e na mídia uma grande parte dos problemas do nosso cotidiano.
Depois de 30 anos de pacto democrático, com ampliação da participação e das lutas, com avanços no campo de direitos de cidadania e com muitas conquistas em termos de políticas públicas a comemorar, a democracia brasileira corre o risco de se ritualizar, de perder intensidade e capacidade de mobilizar energias vivas da sociedade para ir mudando o país, tornando-o mais cidadão. O modo como a disputa eleitoral do ano passado ocorreu só agravou o quadro, pois foi mera disputa pelo controle do poder e não de hegemonia que lhe dá rumo e legitimidade.
Para além do ajuste ou não ajuste, desta ou daquela maneira, criando a oportuna coalizão parlamentar para aprovar medidas, o fato é que faltam ideias e debates sobre o país, sobre a economia e o poder estatal necessário, para criar uma nação de cidadania para todo mundo, participativa e sustentável, de dignidade, justiça e paz. A questão de fundo, totalmente ausente no espaço público do Brasil de hoje, é a impossibilidade de termos mais cidadania, mas democracia e uma sociedade sustentável com tanta desigualdade social, com tanta privatização e destruição de nossos comuns naturais e culturais, com uma democracia capturada e controlada por interesses corporativos, empresarias e patrimonialistas.
A urgência maior é o resgate da própria política como bem comum democrático, gestador de sentidos e rumos para a coletividade. No momento, nenhuma força política no centro da correlação de forças gestada pela última eleição está em condições de fazer e nem tem vontade de criá-las para enfrentar o debate estratégico sobre como revitalizar e radicalizar a própria democracia entre nós, como confronto e disputa entre sujeitos coletivos e partidários, capaz de fazer emergir o projeto mais legítimo no momento histórico do país. Até está na pauta do Congresso Nacional uma proposta de Reforma Política, mas que mais visa manter o status quo do que mudar algo.
Na sociedade também existem propostas de Reforma Política que, porém, não conseguem criar a mobilização necessária, pois não vão ao centro da questão Política (com P maiúsculo), espaço da disputa de hegemonia nas democracias. Tal debate não está na nossa grande mídia, nem nas suas entrelinhas. Algum eco, ainda confuso, só pode ser encontrado nas anárquicas redes sociais e em alguns sítios de internet.
O problema é que a crise de hegemonia é, em si mesma, uma larval crise política. O panorama de impasse e de falta de saída à vista é corrosivo e desagregador. Deslegitima sujeitos coletivos existentes, identidades políticas, formas de ação, debates e propostas, mas nada gera, a não ser mais confusão. Buscar hegemonia, nesta ou naquela direção, é construir blocos históricos coesos, verdadeiras correntes de pensamento e ação, movimentos políticos históricos, que se materializam em partidos e disputam poder. Construir hegemonia é buscar o cimento que une grandes grupos humanos, classes sociais e frações de classes, associações, entidades e movimentos, intelectuais, profissionais da mídia e meios, em torno a um conjunto de valores, visões, análises e propostas de projeto de nação e de seu lugar no mundo interdependente em que vivemos. Ter hegemonia é ser capaz de propor leis, criar instituições públicas, definir e gerir políticas públicas, com mobilização dos recursos humanos, científicos, técnicos e econômicos da sociedade para viabilizá-las. Numa democracia, a questão não é se a hegemonia gerada é de nosso gosto, mas se tem legitimidade. Sem hegemonia, porém, toda política perde legitimidade e o lugar é ocupado por oportunismos de ocasião, altamente destrutivos.
A questão que se coloca diante do quadro de impasses da democracia brasileira neste momento é o que fazer e, sobretudo, como fazer. Precisamos revisitar nossa história recente, da redemocratização. Claro, a maioria das brasileiras e brasileiros não tinha idade ou nem havia nascido para participar do processo das Diretas Já e da conquista democrática contra a ditadura militar. Foi um rico momento de construção de consensos em torno ao estratégico que era conquistar a democracia, mas que deu origem às principais forças políticas que passaram a disputar hegemonia entre nós, da Constituinte até recentemente. Precisamos novamente e de forma urgente juntar-nos, em nossa diversidade de sujeitos sociais e políticos, com visões e opções diferenciadas. Precisamos de generosidade de uns com os outros e ousadia coletiva para promover uma reforma moral e política, na expressão de Gramsci, capaz de gestar novos projetos e forças portadores que, disputando democraticamente, renovem e radicalizem a democracia e nos levem a uma nova onda cidadã vigorosa de 30 ou mais anos.
Numa democracia, a questão não é se a hegemonia gerada é de nosso gosto, mas se tem legitimidade. Sem hegemonia, porém, toda política perde legitimidade e o lugar é ocupado por oportunismos de ocasião, altamente destrutivos.