Por Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Estive de 12 a 15 de abril em Delhi, na capital da Índia, para participar do ateliê “Perspectivas Verdes Sobre as Novas Classes Médias: uma nova realidade e uma chance para o desenvolvimento social e ambiental justo?”. O evento foi organizado pela Heinrich Böll Stiftung, escritórios do Brasil e Índia, juntamente com Development Alternatives da Índia. Trata-se da continuidade de um diálogo crítico e de um esforço comparativo das realidades do Brasil e da Índia, iniciado pelo escritório do Brasil (ver o livro organizado por Dawid Danilo Bartelet. A “Nova Classe Média” no Brasil como conceito e projeto político. Rio de Janeiro: HBS, 2013). Durante o ateliê vimos semelhanças no tocante ao projeto político e ideológico que, através da emergência no contexto da globalização, quer nos tornar países de “grandes classes médias”. Este é tanto o discurso oficial como a sistemática abordagem e visão difundida pela grande mídia, na Índia e no Brasil. No mais, porém, o evento foi de grandes interrogações, diferenças e pontos de vista não consensuais sobre a natureza e sustentabilidade das mudanças em curso. Em particular, esteve em questão todo tempo o porquê deste esforço de mascarar contradições com o conceito difuso e pouco útil de “novas classes médias”.
Fico por aqui quanto às razões de minha viagem. Gostaria de aproveitar o espaço desta crônica para compartilhar algumas impressões e observações sobre a Índia, com seus 1 bilhão e 200 milhões de habitantes, o segundo país mais populoso do planeta, sendo metade ainda abaixo da linha da pobreza. É uma cultura milenar, muito diversa, com muitas línguas até hoje e religiões, tendo como centro de referência aglutinador o hinduismo, porém incapaz de dar conta de toda a diversidade. Um grande território rico em biodiversidade, com terras férteis banhadas por grandes rios formados pelo degelo da Cordilheira do Himalaia e por abundantes chuvas, mais as frequentes monções, foram fundamentais na história para sedimentar povos em torno de uma agricultura forte. Diferentemente da China, porém, a Índia não gerou um império unificador de dentro de si, mas foi invadida muitas vezes por forças imperiais, que deixaram profundas marcas políticas, sociais e culturais na sua formação. O mais recente, de meados do século XIX até o fim da II Guerra Mundial foi o Império Britânico. Após a longa insurgência pacifista liderada por Mahatma Ghandi, a Índia se tornou país independente em 1947.
A estrutura social da Índia combina elementos de um capitalismo globalizado, que hoje avança à la chinesa, com um rígido e obscuro mas atuante sistema de castas dos dominantes brâmenes aos párias sociais formada pela casta dos dalits. Mas ainda entram na composição grandes minorias, consideradas “fora” da estrutura – os islâmicos com seus mais de 200 milhões, maior parte na pobreza e hoje sem representante no Congresso Nacional, são o melhor exemplo. Fundamental ainda é o patriarcalismo fundado no hinduismo que impõe regras rígidas de subordinação às mulheres, que limita a sua autonomia e mobilidade física até. Basta lembrar aqui os frequentes estupros até em coletivos urbanos, sempre acusando as mulheres vítimas como culpadas por não respeitarem a regra de ficar em casa à noite.
Uma tão complexa estrutura social torna difícil o debate de “novas classes médias”. Sem dúvida, lá como aqui entre nós do Brasil, com nossos racismos e machismos, mudanças ocorrem e existe certa mobilidade social. Mas mudam as classes sociais? Na Índia de hoje se destaca o setor das novas tecnologias de informação e comunicação. A Índia é uma prestadora de serviços mundial nesta área, tendo como centro Bangalore. Falando inglês, os principais centros operadores mundiais via internet estão na Índia. Empregam mais de 2 milhões de pessoas, com salários mais altos. E em sua maioria são mulheres… chefiadas por homens. Como nos foi dito no ateliê, as mulheres preferem tal emprego, entre outras vantagens, pela oferta de transporte seguro pelas empresas. Mas trata-se de um trabalho estressante e com horários que afetam a vida familiar, pois os principais serviços são prestados à noite, dada a questão do fuso horário com Europa e, especialmente, os EUA e Canadá.
Mas o que são 2 milhões de empregos com direitos numa sociedade de 1,2 bilhões? No setor formal não chega a empregar 10% da força de trabalho. A economia informal aloja mais de 80% da população da Índia. Mais de 80% dos indianos e indianas vivem abaixo dos 2,5 dólares americanos por dia, renda per capita da Índia em 2012. O maior número de subnutridos do mundo está na Índia, mais do que todo o conjunto de países da África subsaharina. Metade da população urbana vive em favelas. O que sim está acontecendo com rapidez, como entre nós nos anos 70 do “milagre” da ditadura, é um escandaloso aumento da desigualdade social. (Os dados aqui apresentados são de Assem Shrivastava e Ashish Kothari. Globalization in India: Impacts and Alternatives. Pune/Delhi: Kalpavriksh, 2012).
O que impressiona na Índia é certa celebração da globalização neoliberal, particularmente na grande mídia, e o enorme apoio de que goza o presidente indiano, claramente engajado numa agenda de total abertura da economia. Este fato foi um incômodo presente nos debates durante o ateliê de que participei.
Tive a oportunidade de participar de excursões, organizadas pelas entidades indianas, pela cidade de Delhi para ver de perto sinais das mudanças. Entre a minha estada em Delhi poucos anos antes e hoje dá para sentir que a cidade está mudando, mas lá como aqui no nosso Rio, para tornar-se global, atraente para negócios globais. Para tanto a estratégia não é enfrentar a pobreza enorme, mas criar facilidades na instalação de shoppings centers e de vias para carros. Lá também os carros estão em renovação, com modelos maiores, para aquele segmento que pode comprá-los. Claro que pelo consumo tudo parece contraditório, ainda mais na Índia que combina o passado com o presente de um jeito muito especial. Por exemplo, alguém circulando num elefante pela cidade pode estar falando pelo celular. Na cidade velha do centro de Delhi, densa, com aquelas ruelas estreitas com motos e gente disputando espaço, fiação emaranhada, prédios de 3 a 5 andares, com o térreo ocupado por artesões e pequenos negócios de todo tipo, lembra um favela das nossas já consolidada. Mas há uma diferença marcante. Há prédios de 300 anos e profissionais artesões que parecem de outro tempo histórico (passadeiras com pesados ferros à brasa, por exemplo), como com celulares, televisões, etc. Há muita vida porém. Será que isto é parte da nova classe média, noção que a própria antropóloga indiana que nos acompanhava mostrava a total falta de fundamentos.
Enfim, com todas as cores, cheiros e imagens da Índia fica mais uma ideia de mais desigualdade social e insustentabilidade da globalização do que de real transformação da sociedade para mais justiça e oportunidade para todas e todos.
Rio, 19/04/2015
Foto: do blog indiavidyatrip.blogspot.com.br