Rio, 2/05/2014
Por Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Entre nós, são desencontradas as informações e análises sobre o que se passa na Catalunha. Como estive em Barcelona, a capital da região, para participar do “III Seminário internacional: Paradigmas de Convivência Planetária”, tive a oportunidade de me aproximar da proposta de autonomia, que está na agenda pública por lá e mobiliza amplos setores da cidadania. Pretendo compartir aqui algumas ideias e debates sobre o processo catalão. Mesmo marcado profundamente por suas especificidades, o que se passa na Catalunha levanta questões de importância estratégica para a cidadania e a democracia em qualquer parte do planeta, neste contexto de crises profundas e de mudanças geopolíticas do capitalismo que vivemos.
A Catalunha oficial é uma Região do Estado espanhol, uma parte da Catalunha histórica. A Catalunha já foi mais extensa e uma potência relevante no Mediterrâneo, chegando a Nápoles, na Itália de hoje, isto antes de existir a Espanha como Estado. Na atualidade, por identidade linguística e cultural, a cidadania tende a considerar três conjuntos como “Países Catalães”: Catalunha, Valência e Ilhas Baleares. É um território carregado de muita história própria. Mesmo dividido, foi integrado ao Estado espanhol. O que importa aqui reter é o profundo sentido emancipador, de autonomia e de participação que marca a história da cidadania catalã ao longo do tempo.
A Catalunha foi um grande polo industrial no início do século passado. Ali surgiram ativos movimentos sindicais, anarquistas e comunistas. Nos anos 30 do século passado, estes movimentos tiveram destacada participação na instituição da República espanhola e na sua defesa quando explodiu a Guerra Civil. Com a derrota e a implantação da ditadura de Franco, a Catalunha foi particularmente castigada. Porém, o espírito rebelde, emancipador e de autonomia cidadã nunca foi extirpado do seio da sociedade civil catalã, sempre disposta a agir e incomodar, se preciso.
Em 1975 morreu o ditador Franco e a transição para a Monarquia Parlamentar, vigente até hoje na Espanha, se fez com a Constituição de 1978, incorporando demandas da cidadania, mas tutelada pelas elites políticas, econômicas, militares e religiosas. O período permitiu a ascensão do PSOE e os governos de centro esquerda, sucedidos pelos governos de direita do PP, como o primeiro ministro atual.
Na verdade, a transição espanhola da ditadura para a democracia representativa, com uma Monarquia, se fez com base em alguns consensos hoje esgotados, pois que não dão conta dos desafios e das prementes demandas da cidadania na atualidade, como as que alimentam a crescente insatisfação na Catalunha. A própria onda democratizadora das últimas décadas, real mas limitada, revelou-se incapaz diante da realidade nova aberta com a grande crise que o mundo mergulhou em 2008. O endividamento público e a quase insolvência do Estado na Espanha levou a um ajuste estrutural imposto de fora e que atende sobretudo os interesses das grandes corporações financeiras. O ajuste está significando um grande custo para regiões e municípios, taxa de desemprego sem precedentes, endividamento das famílias e as terríveis execuções de hipotecas imobiliárias. A política representativa, hegemonizada pelo PSOE e PP, está claramente deslegitimada junto a amplos setores da cidadania em toda a Espanha. Desfazem-se sonhos, esperanças e até a confiança nas instituições democráticas existentes.
É neste quadro que importa situar alguns movimentos, como o dos “Indignados”, também conhecido como M15 (de 15 de maio, quando começou), ocupando praças e organizando mobilizações nas grandes cidades, também os movimentos contemporâneos dos “occupy”, que se espalharam pelo mundo inteiro. Há ainda o movimento contra o pagamento das hipotecas imobiliárias, que se tornou forte na Espanha, entre tantos outros. A grande mobilização cidadã pela autonomia na Catalunha, que levou às ruas dois milhões de pessoas em 11 de setembro de 2012, é a expressão política mais ousada e ameaçadora às elites, aos partidos e ao próprio Estado espanhol, neste contexto.
O ativismo cidadão pela autonomia da Catalunha já gerou movimento por um processo constituinte, visando a construção da República Catalã. O debate ocupa o cotidiano dos habitantes, com posições que vão do independentismo total em relação à Espanha até a meros ajustes no status quo de Região Integrada à Espanha. No vivo confronto de posições, predomina a busca de formas de autonomia que garantam o direito da cidadania de o território catalão decidir o seu próprio destino, o modo de enfrentar a crise, de organizar sua vida social e economia, a valorização da própria identidade, da sua língua e sua cultura. As experiências de auto organização e gestão pipocam por toda parte e em diferentes domínios, resgatando a tradição autonomista e participativa fortemente implantada no ideário local. É um verdadeiro movimento de cidadania que resgata o legítimo direito, negado nas nossas democracias reais, de ser força instituinte e constituinte. Está claro no contexto político da Catalunha que os partidos e seus líderes estão a reboque da cidadania e não são protagonistas no processo.
O que resultará deste processo é ainda cedo para prever. Certamente pouco ajuda a atitude arrogante do governo conservador em Madri, que simplesmente considera ilegal a determinação do movimento cidadão de lutar democraticamente pelo direito de decidir seu destino, pois nada disto consta da constituição da Espanha. O incrível é que a esquerda espanhola, tanto do PSOE com das outras correntes minoritárias, não consegue se distinguir das posições dominantes no Parlamento e no governo espanhol. Mais visível, dinâmico, criativo, inspirador e em crescimento até agora é o movimento cidadão da Catalunha, que já tem marcada a data para seu plebiscito, em novembro deste ano.
Olhando de fora, mas profundamente solidário com o processo da cidadania na Catalunha, destaco alguns aspectos do que ali se passa. Eles podem contribuir para a necessária reflexão estratégica da cidadania ativa no mundo. Em primeiro lugar, estamos diante de uma cidadania territorializada em uma espécie de sublevação emancipatória diante de um quadro de expansão capitalista comandada por grandes bancos e corporações imobiliárias. A Catalunha se tornou um território de acumulação especulativa sobre o território contra a vontade da maioria da população local. Trata-se de disputa territorial entre cidadania local e capital de fora, sob a guarida do Estado espanhol e da tal troica da UE, seus líderes e suas políticas, com apoio de setores da elite na própria Catalunha. Com a crise, o custo para salvar bancos e pagar a dívida pública se tornou um ônus insuportável para a cidadania. Além disso, as históricas demandas de identidade e autonomia catalã se aguçam em tal contexto.
Seria ledo engano pensar que o problema é apenas um desajuste local, uma crise conjuntural e movimentos de cidadania sem fôlego. Na Catalunha se decide muita coisa de fundamental para a democracia e a cidadania pelo mundo, pois ali se avança em demandas de relocalizar e reterritorializar o máximo possível da vida social, cultural e econômica, baseado no princípio de direito cidadão de decidir. A Catalunha possui a vantagem de ter uma forte cultura participativa e autogestionária. Quer redesenhar um Estado democrático e plenamente republicano de baixo para cima, onde o máximo que pode ser decidido localmente assim o seja, e só subsidiariamente sejam tomadas decisões em outros níveis, que impliquem em direitos e responsabilidades compartidas com a cidadania em outros territórios, seja na Espanha, na Europa ou no mundo. Estamos diante de um laboratório cidadão em pleno funcionamento, que pode alimentar as esperanças e as utopias de outros mundos, baseados em outros paradigmas.
Pode ser que nada dê certo? Pode mais uma vez frustrar expectativas? Tudo sempre é possível. Radicalizar a democracia pela mais ativa participação cidadã, reivindicando o seu poder instituinte e constituinte, é optar por um método que tem princípios e valores éticos claros, é adotar uma estratégica de extrair o possível das contradições e lutas, é procurar tornar possível o que parece impossível, é alimentar um caminho que se faz caminhando. Onde se vai chegar é incerto, mesmo que certezas de possível vitória dêem fôlego ao ativismo cidadão.
A minha intenção nesta pequena reflexão é compartir com redes cidadãs, especialmente aqui no Brasil, alguns subsídios inspiradores que brotam do que se passa na Catalunha. Penso que, com isto, contribuo com alguma luz para nós mesmos, na nossa diversidade de cidadania brasileira, sobre como reinventar ou reanimar a onda democratizadora que, também aqui, está perdendo força. Temos uma gigantesca tarefa cidadã pela frente, sem nos deixar abater pelos impasses hoje visíveis, com a política representativa perdendo capacidade e legitimidade. Nós também podemos olhar mais atentamente para as disputas territorializadas, nas cidades e no extenso rural brasileiro, e mudar de baixo para cima a democracia que temos, com mais direitos e participação, com mais justiça social e mais sustentabilidade da vida, da cultura e dos nossos territórios.