Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
31/03/2014
Lembrar e, mais até, descobrir a verdade são uma necessidade da vida humana. Afinal, somos sujeitos de história, queiramos ou não, é nossa sina como humanos. Trata-se de agir, e no agir significar, seja pelo objetivo que buscamos, seja pelas convicções que nos movem ao agir. Conscientemente, nada escapa ao crivo ético que carregamos dentro de nós, ao menos quando sabemos que somos responsáveis pelo que fazemos ou deixamos de fazer. Ou, ainda pior, pelo que aceitamos fazer o que outros nos impõem de algum modo.
Nas lembranças e buscas sobre os 50 anos da ditadura militar, que nos foi imposta em 31 de março de 1964, sinto muito conforto com várias muitas revelações e significados publicados sobre tal momento e suas consequências. As análises me dão o contexto de um momento que, ao menos nos primeiros anos, me fugia ao alcance. Eu era um jovem de 19 anos, recluso num seminário capuchino, muito influenciado pelos nascentes movimentos libertários no seio da Igreja do Vaticano II. Não tinha acesso a jornais, a novata televisão nem pensar, só havia o rádio, na maioria das vezes captado por aparelhos improvisados, feitos de pedra galena, buscando a emissora mais próxima. A necessidade faz a gente ficar inventivo. Eu estava no seminário de Garibaldi, pequena cidade da serra gaúcha, predominantemente de colonos italianos produtores de uva e vinho. Eu era o único descendente de colonos de origem polonesa, em meio àquela “italianada”. Por sinal, as emissoras de rádio eram mais pró-golpe do que pela democracia. Minha participação externa, nos embates que aconteciam na rua, com todas as suas contradições, era quase nula por causa das normas de uma instituição corporativa, semelhante às instituições militares, como é muitas vezes a Igreja. Porém, os sonhos de revolução daquela geração jovem furavam todas as barreiras e eram o caldo de debates, muitas vezes escondidos, entre seminaristas e alguns poucos dos padres professores.
O golpe militar foi um choque. Mas as ideias da necessidade de mudar o país não esmoreceram. Fiquei mais dois anos no seminário, de onde saí em 1966, já com 21 anos. Mas dentro da Igreja católica que vivi havia um movimento transformador de visões e ideias bem diferente do clima de repressão que foi se impondo na sociedade. Foram os meus dois melhores anos, inclusive porque me deram a sensação de liberdade e direito de escolher e sair da clausura, possibilidade que era rara até o acontecimento do Vaticano II. Devo muito aos dois anos finais de minha juventude no seminário capuchino, pelo cidadão que me tornei, inclusive pela base da formação humanista, filosófica e sociológica que carrego. Cada um com suas contradições, estas são as minhas.
Virei militante e líder após 1966. Só que a ditadura foi endurecendo, tornando-se mais bárbara. Tornei-me líder estudantil em Ijuí, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, hoje UNIJUÍ, em 1967-8. Em 1969, já com Lourdes, minha companheira até hoje, vim para o Rio para o curso de mestrado em educação na PUC, um dos primeiros mestrados do país. Começamos com a tal bolsa comunitária, pois não tínhamos como nos segurar. A bolsa nos impunha um trabalho diário de umas três horas à noite, na biblioteca da universidade. Virei bibliotecário e militante, com uma biblioteca extremamente interessante ao meu alcance. Mas, sobretudo, conheci gente muito interessante. Senti que minhas lentes passavam daquela estreiteza de Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, para uma visão do Brasil. Como era bom ler diariamente o Correio da Manhã. Foi numa edição do Correio que li o Diário de Che Guevara, símbolo maior de minha geração. Na PUC, vivi a ocupação policial de 1969 e tenho amigos até hoje daquela época, como Afrânio Garcia e José Sérgio Leite Lopes.
Mas conto isto tudo para lembrar a minha vivência particular da ditadura, um regime execrável sempre, não importa a motivação política. Em 1969 tudo se radicalizava, e houve o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, que ocorreu bem perto do lugar onde morávamos, na rua Dona Mariana, em um quarto divido em dois – uma amiga ajudava a pagar o aluguel – com um fogãozinho de duas bocas no fundo do corredor e um banheiro de pouco mais de um metro quadrado. Pois bem, este pequeno espaço caminhava para virar um “aparelho” de resistência. Na visita de Robert McNamara, em 1969, a UNE nos incumbiu de pegar gatos no cemitério São João Batista, onde rondamos horas para conseguir um. Na manhã seguinte compramos uma galinha viva, na época isto existia ainda. Bichos largados em plena Rio Branco durante a visita viraram até notícia.
O fato é que minha companheira Lourdes e eu, depois de muito avaliar, decidimos não ir para a luta na clandestinidade, opção de muitos de nossa geração, que acabaram pagando até com a vida. Isto foi difícil e nos perseguiu de algum modo. Será que fizemos a decisão certa? Voltamos a Ijuí, onde começamos a apoiar inciativas de educação popular, de resistência civil à ditadura. Ajudamos também alguns conhecidos perseguidos no caminho ao exílio, para o Chile, em particular, entre 1970 e 1973. Em 1974, a repressão chegou forte naquele recôncavo do Brasil. Decidimos sair, já com duas filhas a tiracolo. Voltamos ao Rio, para trabalhar na FASE.
Tudo mudou com a minha prisão na manhã da chegada ao Rio, em plenos dias de Carnaval de 1974, quando fui atrás de amigos para os nossos primeiros dias. Esta foi uma experiência radical. Fui levado ao DOI-CODI, na Tijuca. Fui solto junto com a babá das crianças, que se recusava a ficar encapuçada e a comer, protestando por terem me prendido. Mas fiquei nas mãos de um IPM, os famigerados Inquéritos Policiais Militares, em liberdade, atendendo. Não conseguia o tal atestado do DOPS para trabalhar. O cerco foi grande. O medo em minha vida se instalou. Felizmente, consegui um bom emprego na FGV, que de tão governamental não seguia a tal norma do atestado do DOPS.
Ter medo, ver perigo em toda parte, é a lembrança pessoal mais forte deste período. Tudo parecia conspirar. Não se sabia se alguém que olhava para a gente era um policial a paisana, que estava seguindo, ou simples paranoia. É uma experiência terrível. Decidimos sair do Brasil para respirar. Afinal, tínhamos duas filhotas, uma de 3 e outra de 1 ano e meio para criar. Como fazer com um processo na Justiça da Marinha? O advogado Fragoso, destemido defensor de presos e perseguidos, nos deu uma mão. Disse que pagando até juiz militar se rendia. Foi o que fiz. Tenho o atestado do “nada consta”, que liberou meu passaporte, até hoje. Em agosto de 1975 partimos para Paris, onde acabei fazendo meu doutorado, com bolsa de solidariedade do Comité Catholique Contre la Faim et Pour le Devélopement. O processo acabou em 1977 e todos os indiciados foram absolvidos. Já eram os tempos da tal “abertura” do Geisel. Voltamos ao Rio em fins de 1978 e defendi minha tese de doutorado em 1979.
O medo foi se dissipando. Mas até hoje fujo da polícia. Não me sinto seguro ao ver polícia ao redor, e sim medo. Acho que isto vou levar ao túmulo. Mas, apesar do medo, nunca deixei de fazer política, no sentido grandioso que este conceito carrega. Trata-se de dar significado coletivo à existência. Na minha volta do exterior, fiz do que sei fazer – análise sociológica com radicalidade democrática – um instrumento a serviço dos nascentes movimentos sociais que explodiam pelo país no final dos 70 e no início dos 80. A ditadura estava condenada, só faltava instaurar a democracia. Hoje, apesar do medo, encontrei sentido no que vivi, sentido humano e político. Isto me tornou forte, ousado. É como me sinto no Ibase, onde mergulhei totalmente nos últimos 24 anos, graças ao amigo e inspirador Betinho.
Veja no Canal Ibase o texto que Dulce Pandolfi apresentou no seminário “O passado presente”, da Biblioteca Nacional, na semana passada, sobre os 50 anos do Golpe Militar.