Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
O ano de 2014 tem uma agenda política pré definida. Mas o resultado dos embates políticos não está dado. Como sempre, a cidadania ativa pode fazer enorme diferença. Esperar que algo aconteça é o pior caminho. Futuros se fazem no aqui e no agora, pela ação de hoje.
Entre os vários eventos com data certa em 2014, que demandam especial atenção da cidadania numa perspectiva de oportunidade de radicalização da democracia, destaco alguns. Não são nenhuma novidade, mas grandes ocasiões, pois pautam naturalmente o espaço do debate público. Ou, são questões que quicam como bola no meio do jogo político, mas os atores dominantes, políticos, governantes, empresários e mídia, parecem fugir delas. Cabe a nós, cidadãs e cidadãos, disputar os sentidos dos acontecimentos, mostrar o seu outro lado e lhes imprimir uma direção que pode levar a mudanças substantivas no processo de seu desenvolvimento, com resultados em democracia e sustentabilidade socioambiental.
Começo pela Cúpula dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, evento que deve acontecer no Brasil, em Fortaleza. A data inicial estabelecida foi a última semana de março, mas como coincide com eleições na Índia, pode mudar. O certo é que vai acontecer. Parece um assunto estranho e sem nenhuma importância, mas não é. Trata-se da reunião de quatro das chamadas economias emergentes, mais a África do Sul, por considerações políticas para não deixar o continente africano de fora. Os BRICS são uma das evidências de mudanças geopolíticas no mundo globalizado pelo capitalismo, com o fim da bipolaridade criada pela Guerra Fria do pós II Guerra Mundial, perda de substância da ONU e a grande crise recente, particularmente grave na potência hegemônica, os EUA, e no grupo de países mais desenvolvidos do G-8. As questões são: que contradições e desafios para a cidadania representam os BRICS? Poderá ser melhor o mundo com potências autoritárias e nucleares como China e Rússia, mais os arsenais nucleares da Índia? O Banco dos BRICS, já anunciado, tem tudo para ser mais importante para o futuro do capitalismo do que o Banco Mundial, mas isto é progresso ou retrocesso? Será que nosso destino como país é ser a “fazenda” do mundo, como documentos chineses nos consideram? Estamos diante de questões para a nascente cidadania planetária. Será que dá para esperar dos BRICS mudanças significativas na governança do mundo? É “outro mundo” que pode nascer ou os emergentes são uma versão ainda pior de um capitalismo que não tem respostas para justiça social e sustentabilidade socioambiental da vida, de toda vida? O evento em Fortaleza, aqui entre nós, é uma oportunidade para por em questão uma opção estratégica do governo, nunca discutida com a gente. A gente conta, não?
Um evento até festejado – a Copa do Mundo de Futebol no Brasil –, dada a importância de tal esporte na nossa cultura e identidade nacional, está na agenda de meados de junho até meados de julho. Podemos e queremos ganhar, isto é uma questão de princípio para nossa autoestima, elemento chave para a cidadania brasileira, expressão do nosso viver em coletividade. Mas por que aceitamos a imposição da Copa do Mundo como um negócio da FIFA e de grandes investidores, antes de ser um momento da gente curtir a alegria dos passes e gols de Neymar e tantos outros genais bailarinos da bola que temos, enfrentando times também importantes? Estamos diante do negócio e de sua lógica de acumulação sem limites acima do espetáculo. Isto feito com dinheiro público, o seu, o meu e de todos os outros e as outras, como lembra Ancelmo Góis. Construímos estádios no “padrão FIFA” não para torcedores da galera, que fazem o espetáculo do futebol ser tão lindo e emocionante. Pior, gastamos fundamentais recursos orçamentários para dar conforto a ricaços daqui e do mundo, mas nos faltam recursos para resolver os problemas de um cotidiano de injustiças e exclusões, que são elementares violações de direitos de cidadania. A explosão de cidadania durante a Copa da Confederações, em junho de 2013, foi um alerta sobre quanto tão discutíveis prioridades são inaceitáveis de um ponto de vista ético e cidadão. Absolutamente nada mudou desde então. Portanto, junho e julho deste ano será necessariamente um mês quente do ponto de vista cidadão. Com um olho na tela – já que não dá para pagar o ingresso nos estádios – vamos tomar as ruas e manifestar nossa insatisfação. Claro que as passeatas nos dias de jogos podem acabar em celebração, com a possível vitória de nossa seleção. Esperamos ser mais hábeis do que os “black bloks” desta vez. Afinal, os direitos de cidadania negados no nosso cotidiano – transporte, saúde, educação e segurança, entre tantos outros – merecem ser gritados e ouvidos pelos governantes e políticos, numa ocasião em que o Brasil “emergente” ganha visibilidade mundial. Vamos manifestar sem medo, com determinação e grande número, sem esquecer de festejar os feitos de nossa seleção de futebol nos estádios em que nos sentimos excluídos.
Bem, temos uma agenda democrática incontornável em 2014. Trata-se das eleições de outubro. Vamos votar para presidente, senadores, deputados federais, deputados estaduais e governadores. Trata-se da espinha dorsal do poder centralizador que temos, mas que depende do nosso voto pelas regras da Constituição que conquistamos em 1988. Utilizando nossa pequena, mas poderosa, arma do voto, como cidadania ativa, podemos fazer mudanças na política, ao menos importantes se não decisivas. A realidade do poder político é também um negócio: ganha quem arrecada mais recursos. Como a lógica é de manutenção do poder, o desafio de impor mudanças é enorme. Talvez vamos ter um aliado inesperado, o Supremo Tribunal Federal. O STF pode impedir o financiamento da campanha eleitoral por empresas, já que nosso Congresso – uma federação de interesses privados e não representação da diversidade nacional – nada decida quando de trata de radicalizar a democracia. Esta decisão legal, por si só, pode alterar de forma fundamental a disputa eleitoral. Cresce em nosso seio o descrédito na política representativa e, daí, a falta de motivação para disputar as eleições. No entanto, não inventamos ainda um forma melhor de manifestar o que queremos como cidadania. Motivar-se e participar das eleições, expressando nossas opções, é fundamental para revitalizar a democracia entre nós. Podemos usar o evento dos BRICS e a Copa do Mundo, entre outros, como espaços de debate de ideias, articulação e formulação de nossa demandas, confrontando com o que os candidatos nos oferecem, limitadamente já que não priorizam a cidadania, diga-se de passagem.
Por fim, mas não menos importante, lembro um tema “invisibilizado” – para ontem, hoje e amanhã – que parece a tal bola quicando e que ninguém chuta. Trata-se da mudança de paradigma civilizatório: a questão socioambiental que implica numa radical mudança no modo de pensar e organizar a sociedade, o poder e economia. Continuamos até aqui como avestruzes, evitando de ver o desastre, tratando tal problema como dos outros povos e países e não nosso. Na verdade, é um problema de todos, planetário, mas com responsabilidades diferenciadas, pois a civilização capitalista, do produtivismo, consumismo e acumulação de riquezas sem limites, gerou um mundo de desigualdades, exclusões e destruição ambiental também diferenciadas. Mas o fato é que, como brasileiras e brasileiros, temos um grande e insubstituível quinhão de responsabilidade coletiva. Não podemos e é eticamente inaceitável que defendamos um desenvolvimento predatório dos recursos naturais – de um território bem comum planetário, pelo qual devemos zelar – dependente de exportação de “commodities”, em nome de fazer justiça social. Ao invés de criar uma sociedade mais justa, estamos postergando mudanças fundamentais, para uma sociedade democrática e sustentável. O Brasil, por seu povo, cultura, imensidade da território e inegualável biodiversidade, tem condições de assumir um papel de líder de mudança civilizatória, do consumismo estreito à biocivilização. Por que nós, como nação autônoma e com autoestima em ascenção, não conseguimos assumir um papel que põem de ponta cabeça o próprio debate sobre o que significa desenvolvimento? Será que continuamos a ser um povo colonizado, com ideias e projetos dos outros ao invés de reinventar o modo de viver, pelo bem da vida, de toda vida, e da sustentabilidade da sociedade do próprio planeta?
A agenda poderia ser acrescida de muitas outras questões, já presentes. Limito às acima anunciadas pois uma dose de pragmatismo é sempre necessário em política. Sonho em podermos recriar movimentos de cidadania irresistíveis, que dobrem o poder econômico e político e alarguem o espaço do usufruto da liberdade e autonomia cidadã. Este desejo pulsa forte em meu coração no começo de 2014. Mais, me recuso de esperar, quero fazer a hora do acontecer de mudanças fundamentais entre nós.
Bom 2014 para todos que acreditam no poder irresistível da cidadania.