Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase
Nestes tempos de necessário isolamento como forma de nos cuidar mutuamente diante de um minúsculo vírus que mata, uma questão que se impôs na consciência coletiva como condição sine qua non do viver é a trama de elos que a tecem sem pensarmos neles muitas vezes. Concretamente, no cotidiano, vamos levando a vida como se não fôssemos apenas um pequeno nó em uma teia de dimensões planetárias ecossociais em movimento permanente, antes e depois de nós, de nossa individualidade. Literalmente, somos, cada um e cada uma, uma síntese complexa de relações naturais e sociais. No entanto, precisamos de violentas sacudidas como a da Covid 19 para darmos conta que o viver consiste em ter direito a compartilhar exatamente isto: sentir-se um ser autônomo, uma experiência única, mas compartida com e dependente dos demais, num tempo histórico muito específico e curtíssimo.
Nascemos por cumplicidade de amores, desejos e prazeres, até sofrimentos, de pais e mães que nem escolhemos, mas que são os elos mais imediatos e vitais, que não temos como negar, mesmo, muitas vezes, rompendo afetiva e concretamente com eles. Mas o sangue do elo natural e social – na sua versão crua e nua popular – nos une até a morte e segue em nossos filhos e filhas, pois a vida continua como frágil força que não controlamos, mas compartilhamos. A vida é uma grande rede, complexa, contraditória, que se tece maravilhosamente e de forma continua.
Por que estou trazendo ao centro de minha crônica este tipo de questão? Em primeiro lugar, porque estou impressionado com o volume de reflexões, angústias e análises sobre tal redescobrir do sentido da vida que são compartilhadas nas redes sociais digitais, tão centrais hoje em dia em meio às experiências do viver isolados em nossas casas. Em segundo lugar e de forma mais estruturante, porque tais questões são fundamentais para redescobrir os elos determinantes do viver e para, ao refletir sobre eles, refazer o nosso modo de viver atualmente, quase nos ignorando apesar de estarmos juntos em toda parte. Estamos diante da necessidade de revolucionar estilos de vida, modos de nos organizar, pensar e agir, modos sociais de produzir as condições materiais de nossa troca com a natureza para viver.
O que proponho é muito complexo e simples, ao mesmo tempo. Complexo e até difícil pois nossas formas de pensar e agir parecem estar fora de lugar e temos muito a mudar, desde sonhos e desejos, valores e práticas cotidianas, até relações sociais, estruturas econômicas e de poder, institucionalidades, leis e regulamentos, que conformam o cotidiano como “normalidade” histórica. O capitalismo, entendido como modo de produzir movido pela acumulação privada e primazia da competição dos mercados, colonizou a vida e nossas cabeças. A simplicidade do que proponho é aceitar a bofetada que a Covid -19 nos está dando nos chama para o mais elementar e fundamental do viver: somos seres ecossociais parte de toda a biosfera e dela dependentes de forma solidária. Viver é uma espécie de força propulsora alimentada pelo tecer de redes naturais e sociais.
Não existe vida sem comuns compartilhados, consciente ou inconscientemente. A água é vida. O ar é vida. A biodiversidade nos dá vida como alimento cotidiano. A integridade dos sistemas ecológicos da nossa casa comum, o Planeta, é condição de toda a vida. A linguagem, a poesia, a música e o canto, a ciência e a cultura, são invenções humanas indispensáveis do viver em coletividade, de cuidados e solidariedades. Tudo isto constitui a base de direitos comuns, coletivos, fundamentais para o viver, de nós humanos e de todos os seres vivos, em nossa interdependência e compartilhamento do que é a vida, a continuidade da vida.
Como reconstruir nossos sonhos, projetos e militância cidadã com base em tais reflexões que acabam se impondo nestes dias de isolamento? Não tenho respostas! Mas tenho a certeza de que estamos sendo levados a pensar sobre isto e que este processo é regenerador, revitalizador. Aliás, como cidadania do Brasil, precisamos muito de tais impulsos para não desesperar diante do pandemônio político que está sendo imposto pelo governo do capeta capitão. Temos muito de vitalidade a extrair da sofrida experiência que estamos vivendo em nossas casas para as lutas democráticas que se desenham no horizonte histórico próximo. Mas não temos como não pensar em aquelas e aqueles que, nos territórios de desigualdade social e exclusão a que estão relegados em nossas cidades, não tem como imaginar outro amanhã. A solidariedade se impõe como condição fundamental para refazer nossas vidas em coletividade compartilhada, como forma boa de se viver para todas e todos, como direito igual na diversidade do que somos e queremos ser.
Rio, 03 de junho de 2020