Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Conselho de Governança do Ibase
As insurgências em curso em vários países da América Latina, com todas as suas contradições, nos levam inevitavelmente a pensar a situação que vivemos em nosso Brasil. Parece que este ano, ao menos, não teremos a nossa “primavera” política e o processo de verdadeira degradação democrática vai seguir ladeira abaixo. Até onde? O beco em que estamos metidos pode afunilar ainda mais e parecer não ter saída? Possibilidades de piorar sem dúvida existem e é o cenário possível no imediato. No entanto, a história humana e das sociedades se faz fazendo. Os processos políticos são resultados de múltiplas determinações, onde as condições existentes são apenas isso, condições, e não as forças sociais que, com sua ação, impulsionam a história. Mesmo nas piores condições, a história está por ser feita como resultado das relações de força política.
A sensação do impasse democrático é real, pois não dá para negar que a desconstrução da Constituição de 1988 chegou a um ponto em que os seus fundamentos foram destruídos. Na minha análise, levando em conta que saíamos de uma ditadura militar e seus Atos Institucionais, a Constituição foi uma conquista, mesmo se fruto de um pacto de conciliação de classes, com grandes avanços em termos sociais e com pouco aceno a mudanças capazes de transformar democraticamente a estrutura geradora da concentração econômica e das desigualdades, injustiças, violência social e destruição do grande bem comum natural de que o Brasil é gestor. Bem ou mal, tivemos um processo de disputa mais aberto e livre das políticas, especialmente sociais, com avanços nas últimas décadas não negligenciáveis. Porém, sem mudanças estruturais nas bases da “colonialidade” férrea de nosso capitalismo periférico, está sendo muito fácil destruí-las, como estamos vendo nos últimos anos e mais ainda agora com o governo Bolsonaro. Continuamos sendo uma sociedade dependente de uma economia que é organizada em proveito de suas oligarquias agrárias e financeiras, seu patriarcalismo e racismo, sua histórica dependência de um extrativismo sem limites, num contexto de globalização controlado por grandes corporações.
Como considero que, estrategicamente, a possibilidade de sair de tal impasse estrutural, agravado com a descaracterização e perda de substância da Constituição de 1988, depende da vitalidade da democracia no seio da sociedade civil e, em particular, da cidadania ativa em sua multiplicidade de identidades e vozes, devo reconhecer que estamos num beco difícil, praticamente encurralados. Os ataques que estão sendo feito pelo governo Bolsonaro, através das PECs de seu ultraliberal ministro Paulo Guedes e de seu antidemocrático ministro Sergio Moro, secundados pelo primeiro escalão militar e contando com subserviência do Congresso e do Judiciário, nos leva a não ver saída fácil de tal impasse no futuro imediato.
Aqui chego ao ponto que gostaria de bem caracterizar. Resistências de cidadania pipocam na sociedade brasileira, a cada dia. Mas são apenas diques de contenção de estrago maior, sem ter demonstrado até aqui eficácia de contenção da enxurrada política destrutiva de direitos, de empregos, da previdência social, da saúde e da educação, da cultura, dos territórios e povos, das florestas e mares, das empresas públicas e do viver em coletividade. Tudo com uma violência e licença para matar a quem se opõem. Estamos diante de uma desconstitucionalização e desinstitucionalização que nos leva ao “fascismo social”, muito bem caracterizado por Boaventura Souza Santos. Ouso perguntar: será que ainda mantemos o sentido profundo do viver numa democracia, apesar das eleições, parlamentos e tribunais funcionando? Será que resistências da cidadania são suficientes e capazes de impedir o pior? Como sair do impasse?
Sem dúvida, é muito bom ter Lula livre, mesmo sem saber até quando. Algo muda, mas não o essencial, pois um dos problemas que teremos que enfrentar é a perda de substância dos partidos que temos – seja na esquerda, centro ou direita – e, portanto, perdemos condições estratégicas de institucionalidade democrática para a disputa política. Não está mais importando quem ganha e com que agenda, pois no poder pode mudar e com suas alianças pode se comprometer e perverter. Este é um fato que precisa ser dito e reconhecido no seio da cidadania brasileira. Precisamos nos reinventar e reinventar a política cidadã e democrática. Cabem frentes e pactos? Sim, mas em bases totalmente novas e com agendas de uma radicalidade democrática que nem sabemos direito qual.
A grande questão, para mim, é: como recuperar, desde aqui e agora, nosso papel de cidadania constituinte e instituinte? Como fazer isso com agenda de século XXI diante de uma globalização e impasse do capitalismo em termos mundiais, com risco de nos levar à barbárie com crise climática e destruição da civilização humana? Ao falar de agenda século XXI estou me referindo a uma perspectiva de democracia ecossocial, de mudar totalmente nossa relação com a natureza e os bens comuns e as relações de gênero, raça, povos originários. Isto só será possível se de saída afirmarmos que a sociedade não pode, em nenhuma hipótese, ser subordinada à liberdade da economia, pois a única liberdade que conta é da cidadania, das pessoas humanas. Tão pouco, a sociedade pode ser subordinada ao Estado, pois é seu derivado e mandatário para regular exatamente a economia e os mercados, a relação com a natureza e o atendimento essencial de necessidades e desejos humanos com sustentabilidade. Não vejo como avançar nisso sem uma perspectiva estratégica de constituinte e de uma verdadeira e radical constituição democrática. Claro, sinto-me inspirado pelas insurgências que começam a pipocar pela região e pelo mundo.
É possível? Volto a afirmar que a história é obra humana e depende das opções estratégicas e ações da gente em ação.