Athayde Motta
Diretor-executivo do Ibase
Na mais recente eleição para escolher um novo membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), o cineasta Cacá Diegues foi escolhido com maioria dos votos. Em segundo lugar ficou o livreiro Pedro Corrêa do Lago. A escritora negra Conceição Evaristo recebeu um voto. A ABL perdeu a oportunidade de eleger a primeira mulher negra para fazer parte de sua lista de “imortais”. O resultado fica ainda mais vergonhoso porque Conceição é uma escritora reconhecidamente sublime, vencedora do Prêmio Jabuti, o mais prestigiado da literatura brasileira. Não há parâmetro possível de comparação entre ela e os outros concorrentes, a despeito de suas reconhecidas famas em suas respectivas áreas. Conceição é simplesmente uma escritora. Os outros apenas escrevem.
Como se não bastasse, uma matéria do “The Intercept” descreve em pavorosos detalhes o processo por meio do qual um(a) escritor(a) se candidata à ABL. Compadrio descarado, ações de “bons modos” que evocam um ambiente de falsidade e dissimulação, jantares e eventos exclusivos e excludentes que custam uma fortuna, atos de ostentação explicita cujo único objetivo é fazer lobby por votos. Nenhuma palavra sobre livros ou literatura. Dignamente, Conceição teria se recusado a participar desse ritual absurdo do qual a literatura está notoriamente ausente.
A candidatura de Conceição teria sido um ato de protesto apoiado por um amplo leque de pessoas e organizações. Eu entendo o motivo, mas considero uma ação política mais efetiva recusar-se a fazer parte de instituições que historicamente nos excluem. A ABL, abjeta em suas cerimônias e ritos em descompasso com a inteligência vibrante que existe na vida real, evita qualquer possibilidade de abertura ao novo e cultiva uma cultura hipócrita que representa o pior desse país: distribui cadeiras para escritores menores e para pessoas cujo destaque, por muitas vezes, não têm qualquer relevância para a literatura brasileira. “Mas que postura rígida”, diriam coleguinhas defensores de um clubismo classista e racista do tipo mais rasteiro. Então tá. Enquanto isso, no mundo que negros e brancos pobres habitam, uma literatura periférica explode de uma forma que entusiasma escritores e leitores. Aqueles que, como eu, já tiveram a oportunidade de ir a um Sarau da Cooperifa , em São Paulo, ou em um evento da Flup, no Rio, sabem o que é a ABL e têm perfeita clareza de sua desimportância. Fazem literatura de excelente qualidade e a vivem por completo, em vez de manuseá-la como ferramenta de alpinismo social.
A dívida que instituições como a ABL têm com escritoras(es) e intelectuais negras(os) é incomensurável, mas não deveria mais ser cobrada. É hora de pagar com outra moeda. Espero sinceramente que a Associação Brasileira de Pesquisadoras e Pesquisadores Negros (ABPN) tome para si a tarefa política de reconhecer e divulgar amplamente o patrimônio intelectual criado por mulheres e homens negros deste país. Sua ação política nesse sentido demonstraria nossa independência de ser, existir e pensar. Seria um protesto permanente contra o racismo que não nos deixa em paz.