Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Na última quinta feria, dia 7 de junho, a convite do Clube de Engenharia, participei do Painel “Direitos civis e inclusão social”. Foi o quarto de uma série organizada pelo Clube e junto com o Comitê Fluminense do Projeto Brasil Nação, louvável iniciativa dado o momento que viemos. Está difícil até para reencontrar os elos que podem nos conectar e mobilizar nesta conjuntura política altamente desagregadora. Somos uma espécie de “velha guarda da cidadania” em alerta e busca, mas a falta de esperança está estampada no ar e parece maior do que a indignação com tudo o que está acontecendo no Brasil.
Para a minha intervenção no painel, tentei organizar minimamente algumas indagações que ando fazendo sobre porque nossa democracia é tão facilmente capturada e desconstruída por interesses e forças dos “donos de gado e gente”, que não hesitam valer-se de arrivistas e golpistas institucionais para nada ceder em seu poder de mando e privilégios. Eles só aceitam democracia como regime político liberal, para a liberdade de explorar, saquear, acumular tudo e sobre todos e todas, com um Estado capacho, que adapta leis, instituições e orçamentos para a boa saúde dos negócios. Direitos só para quem pode e inclusão social para os já incluídos. Governos minimamente distributivistas e voltados à inclusão no consumo, como tivemos, só foram tolerados enquanto o fizeram com uma estratégia de “ganha-ganha”, com um crescimento que, mais do que financiar programas sociais, permitiu uma extraordinária expansão dos lucros de um punhado de banqueiros, das grandes corporações extrativistas e da modernizada oligarquia do agronegócio. Em 30 anos de redemocratização, mudamos para estruturalmente nada mudar. Bem, devo reconhecer, mudamos em algo essencial: temos uma consciência social coletiva de direitos, uma cultura de direitos de cidadania, que se espraiou exatamente nas camadas mais oprimidas da sociedade brasileira. Um grande feito da democracia conquistada com a Constituição de 1988.
Com tais indagações, ao organizar as ideias para o painel, comecei a ver com clareza inspiradora que precisamos olhar mais para a sociedade do que para o Estado. Se alguma mudança pode vir é do seio da sociedade civil e não do poder estatal. O lado ruim desta constatação é que me deparei com o fato que temos uma origem e mantemos até hoje relações e organização social extremamente autoritárias, oligárquicas, hierárquicas, violentas, racistas e machistas. Pior, somos uma sociedade que convive com isto como se fosse normal. Ela é baseada numa convenção social implícita, internalizada, inconsciente, fora das leis e da institucionalidade democrática, que é, como já disse, racista, machista e extremamente autoritária.
Reconheço que é nada confortável chegar a tal conclusão. Mas nada como arregaçar as mangas e começar desde aqui e agora, desde as trincheiras de resistência cidadã em que estamos confinados nesta conjuntura, a tarefa da transformação. Não adiantam contorcionismos. Precisamos encarar a questão do autoritarismo como algo incontornável, sabendo que poderemos ter ainda muitas heroínas inspiradoras como a Marielle para chorar até conseguir mudar tudo isto. Como analista, sei que a barbárie é também uma alternativa, mas o nosso desafio é, exatamente, evitar que ela aconteça e, mais, que uma alternativa de uma sociedade realmente democrática floresça em nosso seio.
Voltando ao título desta crônica, estou convicto que devemos todas e todos formular para nós mesmos a questão sobre o lugar em que guardamos e o quanto o autoritarismo permeia as vivências cotidianas, na família, na rua, no trabalho, nos lugares que frequentamos e nos modos como vamos levando a vida. Não existe racismo e patriarcalismo, violência e autoritarismo sem sociedade que seja racista, machista, violenta, autoritária. Isto está no nosso modo de ser, antes de estar no Estado, no poder institucional.
Assim, para que a democracia adquira substância e capacidade transformadora, precisamos construir antes uma sociedade democrática, uma cultura e uma vivência nas quais a democracia esteja no seio, no reconhecimento da nossa fundamental igualdade humana em meio à fantástica diversidade de ser e viver como humanos, em territórios da maravilhosa variedade do Planeta, que compartimos entre todas e todos. Trata-se de construir hegemonia, no sentido gramsciano, de princípios e valores de direitos iguais, de liberdade igual, de comuns compartidos, de lugar para todas e todos. Claro, tudo isto deve se refletir em reconhecimento coletivo ao nível da estrutura política e econômica, com leis e institucionalidade democrática. Mas o que vem antes é a sociedade democrática, ou melhor, a cidadania que brota na sociedade com a consciência e a prática de força instituinte e constituinte da democracia social.
Neste quadro, duas tarefas prioritárias se impõem dada a nossa realidade brasileira: a luta contra a segregação e a violência racial, territorial, institucional, e a luta contra o poder e violência machista. Isto perpassa toda a estrutura social, em todos os níveis. O capitalismo entre nós se vale do racismo e do patriarcalismo para criar verdadeiras barreiras à efetiva democratização da sociedade, com inclusão social plena. Concluo afirmando que, para uma tarefa de radicalização da democracia, a luta por direitos civis e políticos iguais para todas e todos é uma condição incontornável. A democracia só deixa de ser um regime político e passa ser estruturante da sociedade se os princípios éticos e políticos da igualdade de direitos e de total liberdade para lutar por eles formem o modo de conviver na sociedade. Não se trata de buscar consensos, mas de fazer dos discensos, ou melhor, da luta de classes, uma força de transformação na busca de uma sociedade de direitos iguais, mais justa, participativa e, assim, de sociopolítica democrática.
Rio, 11/06/2018