Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
A greve dos caminhoneiros mostrou como somos dependentes de seus serviços de transporte. Não é meu objetivo analisar as complexas questões que motivaram a greve, nem o que ela revela sobre a fragilidade, insensibilidade e ilegitimidade do governo Temer em tratar uma questão assim. O país simplesmente parou porque alguns milhares de caminhoneiros, sentindo-se não atendidos e nem escutados em suas reivindicações, pararam de fazer o transporte de produtos entre pontos de produção e consumo. É um fato político e econômico que põe a nu toda a teia de relações sociais de convivência e interdependência que tornam viável a vida em sociedade. De repente descobrimos que aqueles enormes caminhões que trafegam nas estradas e ruas, tornando difícil e perigoso o trânsito, são indispensáveis para que tenhamos acesso a bens e serviços fundamentais no nosso cotidiano. Visíveis pelo seu tamanho, mas invisíveis como veias que interligam a vida na sociedade.
Estamos diante de uma complexa questão de infraestrutura logística da sociedade que carrega em si toda a lógica social, econômica e política da história passada e tudo que fazemos no presente, materializada na organização dos diferentes territórios em que vamos levando a nossa vida. O fato é que temos estilos de consumo e de vida hoje que dependem cada vez mais de relações que escapam ao que podemos considerar nosso território de cidadania, o local. O capitalismo globalizado nos faz reféns de relações que vão do local ao mundial e do mundial até nós, nos tornando parte dos dramas e desafios do mundo todo.
A questão dos combustíveis, que é uma parte importante da atual greve dos caminhoneiros, é exemplar para mostrar o que estou querendo enfatizar. Somos hoje um país grande produtor de petróleo, num mundo com central disputa geopolítica de governos e corporações pelo controle do chamado “ouro negro”. Não importa aqui que a energia fóssil seja a grande vilã na questão ameaçadora da mudança climática. O mundo real – e o nosso imediato, no aqui e agora – é movido por essa energia e ela é o calcanhar de Aquiles da infraestrutura do futuro da globalização capitalista. Controlar a energia fóssil é controlar o mundo. Pois bem, por razões que não vou entrar aqui, o Brasil hoje está com uma política de produzir cada vez mais petróleo, exportá-lo e importar, em quantidades crescentes, óleo diesel e gasolina! Claro, a preços praticados no mercado internacional. Ou seja, apesar de produzir petróleo, decidimos depender da disputa sobre energia fóssil entre os que dominam o mundo e, com isso, viramos importadores de combustível.
Esta é apenas uma parte da questão muito importante, mas não suficiente como causa, no que estou preocupado em destacar aqui. Outro problema, também decisivo, foram as decisões tomada lá atrás, nos anos 50s e 60s do século passado, optando por uma logística nacional de transportes totalmente dependente do sistema viário, de caminhões para produtos e de ônibus para passageiros, além dos aviões para longas distâncias e dos incentivos para o carro individual nas cidades. Somos um dos países “baleia”, em termos territoriais, que mais dependem do sistema viário. Até nossas cidades, com suas ruas, fachas exclusivas, viadutos e túneis parecem mais adaptadas a quatro rodas do que aos cidadãos, sua função original e fundamental até hoje como território de cidadania compartilhada.
Ainda outro desafio, determinante desta questão dos transportes em nosso cotidiano, é o estilo de consumo e de vida que levamos. Para ser claro, lembro aqui um aspecto do nosso dia a dia que muita gente simplesmente ignora: quando vamos comprar algo no supermercado pensamos onde o produto que buscamos foi produzido e como foi produzido? De modo simples, afirmo categoricamente aqui que nosso prato de comida vem sendo cada vez mais mundializado, até macdonalizado. Apesar de sermos um dos maiores países de produção e exportação de alimentos – sem dúvida, o maior pomar do mundo – importamos comida e frutas! Simplificando, estamos nos tornando cada vez mais dependentes do sistema de transportes, até mundial, para satisfazer nossas necessidades essenciais do cotidiano. Por que? Aqui no Rio, por exemplo, mais de 90% do que comemos vem de fora do Estado. Não tenho dados sobre o quanto é do exterior, apesar de ficar indignado vendo gente no mercado preferindo a maçã importada às gostosas maçãs nacionais.
Estou me estendendo nestas questões relacionadas ao tema dos transportes para deixar mais claro o argumento central de minha reflexão nesta curta crônica. O fato é que o viver em sociedade tem como pressuposto o conviver, interdepender, compartir. Não importa o tipo de sociedade ou o modo de sua organização histórica, se mais excludente, exploradora e dominadora por poucos, ou mais includente, democrática e distributiva entre todos dos frutos do trabalho coletivo. A vida humana nos faz sempre uns e umas dependentes de outros e outras, mesmo com todas as desigualdades, racismos, machismos, ódios e intolerâncias. Somos entes sociais, queiramos ou não. Na complexa sociedade em que nos cabe viver hoje, tal dependência, melhor dito, interdependência, nos faz descobrir que não temos como ir levando a vida sem a fluidez e a normalidade, quase inconsciente, do sistema de transporte rodoviário, para voltar ao ponto de partida de minha crônica.
Lembro aqui que a “convenção social” fundamental para qualquer sociedade é um substrato da vida. A língua e, genericamente, a cultura fazem parte disto. A moeda é uma convenção social que, mesmo regulada pelo poder político, é aceita como expressão de valor. No entanto, a moeda não passa de um papel, um cartão de crédito/débito, uma expressão numérica numa conta bancária, que funciona como expressão social porque é uma convenção social atuante. Não são constituições ou leis que criam as convenções, no máximo elas ratificam, e sempre de modo parcial e histórico. É a convivência e o compartilhamento que tornam necessárias convenções sociais indispensáveis para viver em coletividades.
O sistema de transportes é, por excelência, uma convenção social. Não nos preocupamos com ele, simplesmente esperamos que funcione e que seja eficiente, mesmo se cheio de contradições e causador de graves acidentes nas rodovias. A greve dos caminhoneiros nos faz pensar no quanto ele é essencial, como não temos como viver sem ele. Nada como uma crise assim para pensar melhor e até transformar o modo como o sistema funciona. De toda forma, é incontornável a interdependência de algum sistema de transporte, seja qual for, para um mínimo de “normalidade” no viver.
Não estou aqui a defender esta ou aquela convenção social. Estou sendo categórico quanto à sua necessidade, mais ou menos consciente, mas fundamental para qualquer sociedade. Sempre o melhor é avançarmos em convenções sociais democraticamente aceitas, transformando este substrato da vida em questão do modo como nos organizamos. Para apimentar e mostrar como essas convenções são uma questão estratégica, lembro aqui que o patriarcalismo e o racismo, duas grandes mazelas sociais, são, antes de mais nada, convenções sociais estruturantes de nossa sociedade. Não estão em leis, mas funcionam como consenso. Aí é que está o seu enorme poder de determinar o modo como vivemos, pois como convenções sociais historicamente construídas estão sub-repticiamente presentes em tudo o que somos e fazemos, como uma espécie de normalidade aceita.
Enfim, nada como uma greve caminhoneiros para nos fazer pensar em como nos estruturamos como sociedade.
Rio, 28/05/2018