Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Já estamos entrando em maio, a poucos meses das eleições. Nos 30 anos que nos separam daquele momento da Constituinte e da nova Constituição, talvez seja a primeira vez que, a essa altura, não sentimos no ar aquele clima de eleição chegando. Claro, todo mundo sabe que o único fato relevante até aqui foi a prisão de Lula, visando impedir que este grande líder de nosso tempo, gostemos ou não, dispute o pleito para presidente. Conversas de bastidores, naqueles espaços pouco iluminados da política e da costura de acordos, estão acontecendo, muito mais do que vaza nos noticiários e redes. Mas, por que estes papos sem transparência parecem não interessar ao povo? Será que a insatisfação com os representantes políticos e os partidos chegou ao ponto de levar muita gente a dar as costas à própria política? Já há muitos que fazem prognósticos de grande abstenção e votos brancos ou nulos nas eleições de outubro.
Política tem a ver com busca de projetos e rumos coletivos. Em democracias minimamente substantivas tal disputa se faz com participação popular, pelo voto igual e livre, complementada pela ação direta nas ruas, participação em espaços de representação e pressão permanente da cidadania, único poder instituinte e constituinte. Podem ser democracias locais, radicais, socialistas, até liberais, as menos substantivas, mas democracias. Para existir a democracia é essencial que a mobilização de cidadãs e cidadãos decida, por maioria, para onde ir como coletividade, num compromisso que nunca é permanente, pois periodicamente precisa ser renovado pelo exercício da cidadania, sempre ela. “Democracia é um pacto de incertezas” (na concisa definição de Adam Przeworski). Seu poder construtor e transformador reside exatamente nesta busca, em que a virtude está no método, no modo de fazer, de luta por projetos e pelo direito de exercer o poder – que nunca poderá ser absoluto -, sem violência os derrotados.
No Brasil, com a ruptura do pacto constitucional de 1988 pelo golpe parlamentar de 2016, entramos numa zona de turbulência que afetou de morte o sentido mesmo da democracia. Formalmente, ainda somos uma democracia. Na prática já temos evidentes sinais de fascismo e podemos ser considerados como “democracia fascista” (Boaventura Souza Santos), se é que algum sentido de democracia pode existir no fascismo. Bem, vale lembrar que Hitler e Mussolini se forjaram no seio de democracias! Nem dá para esquecer o papel da grande mídia e de certos grupos financiados por organizações empresariais na criação do clima de ódio e intolerância com os petistas e a esquerda em geral, com os diferentes, com os pobres, negros e as muitas galeras da diversidade. Enfim, criou-se no espaço público do Brasil um ambiente favorável ao nosso “monstro” e ao caminho para a barbárie, como já vemos e vivemos diariamente.
Não bastasse isso tudo, temos os sinais concretos de fascismo no Judiciário, no Executivo, no Parlamento, onde a lei, a igualdade, os direitos, o interesse público, tudo, enfim, está sendo deixado de lado. Sucateia-se a política enquanto tal e prevalecem os interesses pessoais e corporativos, de setores de classes dominantes e grandes grupos privados. Trata-se de um governo com um “projeto” sem voto, sem legitimidade, de um governo formado e apoiado por corruptos, comprando bancadas parlamentares com recursos orçamentários – bancadas totalmente inorgânicas em termos políticos e partidários – e contando com a conivência de um Judiciário a seu modo subserviente. O governo Temer já desconstruiu o núcleo socialmente substantivo da Constituição de 1988, promoveu monumentais retrocessos em direitos sociais e nas políticas que os garantem, com desemprego, miséria e muito sofrimento. Diferente da ditadura militar, de triste memória, está entregando tudo ao mercado, especialmente a grandes grupos corporativos globais, mudando as leis socioambientais protetoras do patrimônio natural que nos cabe usar cuidando pela sua integridade, essencial para a humanidade inteira. Tudo em nome do privado e, com isto, privando a nós todas e todos de tudo. Pode ter algum sentido mínimo de democracia um monstrengo institucional assim?
Fomos levados a uma espécie de vazio, vazio de sonhos, de projetos, de possibilidades. Criou-se um clima de espera que paralisa. Nada parece ter sentido, as ideias parecem fora do lugar e do tempo. Sem dúvida, trata-se de uma atmosfera política poluída e colonizada no mundo todo pelos valores e pela pregação de que não existem alternativas à globalização neoliberal capitalista do tudo pelo mercado, que, aliás, colonizou e poluiu o nosso bem comum ecológico que regula o clima do Planeta Terra. Nós, aqui neste pedaço do Planeta, importante sem dúvida, precisamos lidar com tais “vazios” simbólicos, desmobilizadores de cabeças e corações, da cidadania enfim, mas que na prática são altamente destrutivos da natureza, de vidas e da democracia como modo de ir levando a vida com um mínimo de dignidade e sentido.
Esperar por algo acontecer não é uma alternativa. Neste momento me vem à cabeça o refrão daquela canção inspiradora e mobilizadora do Geraldo Vandré, de resistência e vitória sobre a ditadura: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Saber e fazer a hora! Pode isto ser uma agenda para o ativismo político desde aqui e no momento em que estamos?
O fato é que precisamos resgatar a política do controle privado que se impôs sobre ela através de interesses ocultos que, de uma forma ou outra, a financiam e corrompem. As bancadas no Parlamento não representam a diversidade viva da cidadania brasileira. Mudar isto é, nas democracias, condição para mudar tudo mais. Outubro está chegando. Saberemos votar por uma representação mais aderente à cidadania? O processo é de longo prazo, mas caminhos se fazem ao andar e começam em algum lugar e hora. Nossa hora é hoje, e nosso lugar é aqui, nas trincheiras de resistência em que nos encontramos, naqueles interstícios quase invisíveis de nossa sociedade de segmentações e segregações extremas, sociais, raciais, institucionais, territoriais. Muitas são as resistências, mas, sejamos claros, a situação existente no país nos atomizou. Romperam-se aqueles fios, elos e nós de amarração, que nos faziam sentir muitos “uns” num bloco complexo de “nós”, contraditório até, mas cheio de vida, de forças de cidadania. Foi isto que levou, de forma democrática, a governos minimamente atentos às grandes injustiças socioambientais que marcam a vida neste Brasilzão amado. Como recosturar tal teia como um bloco cidadão em movimento pelo flanco da esquerda, das ideias de igualdade com respeito da diversidade, de liberdade para optar e viver, de solidariedade e convivência, de bens comuns preservados, de participação como força motora e renovadora de tudo?
Uma tarefa é olhar mais para a base. Como dizia Betinho, precisamos olhar menos ao Planalto e mais para a planície, onde estamos e vamos levando a vida, como se pode em uma conjuntura assim. Esta é uma tarefa inadiável e, vale a pena dizer, permanente. O caminho só será caminho se for o nosso caminho, a partir da planície, fincado no simbolismo. Temos muito a reconstruir entre nós, na nossa dispersão de hoje, não esquecendo dos aprendizados de ontem, mas sabendo desde o início que um novo saber político deverá ser reconstruído coletivamente. Afinal, o Brasil, bem ou mal, está muito mudado, em quase tudo, comparando com 30 ou 40 anos atrás. Hoje existem resistências fundamentais, nas quais podemos inspirar e, a partir daí, contribuir para construir conjuntamente os elos entre resistências sem trincheiras contínuas, mas que podem se descobrir e tecer o comum que as conecta e que pode a ser base de um mover-se junto.
Termino lembrando que se é sábio fazer a hora e não esperar, também é sábio ter uma visão estratégica de longo prazo, longuíssimo prazo, de geração. Vivemos uma encruzilhada de civilizações. Para evitar a barbárie que está no horizonte, aqui entre nós e no mundo todo, precisamos de vitórias urgentes. Mas a mudança não virá criando barreiras à barbárie. Precisamos pensar em transformações irreversíveis desde já e elas se fazem na construção dos caminhos que saem daqui, do agora, com a única condição de grandes sonhos utópicos e muita estratégia possível no hoje.
Rio, 02/05/2018