Marcha das Vadias em Belo Horizonte, 2013 (CC BY-SA | Foto: upslon)

Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

Na última semana, como parte da celebração do dia das mulheres em 8 de março, li muitos artigos profundamente instigantes sobre o longo processo de lutas femininas e feministas pela igualdade de direitos na diferença diante dos homens. Não dá para negar o enorme protagonismo político e visibilidade destes movimentos na atualidade, tanto diante da dominação e violência de que são vítimas por serem mulheres, como diante de governos e grupos reacionários, conservadores e fundamentalistas, no Brasil e no mundo. Isto me levou a pensar na radicalidade transformadora dos movimentos feministas e no seu significado para a humanidade com um todo.
Antes de tudo, penso que importa reconhecer que a emancipação feminina só pode ser celebrada e, sobretudo, apoiada, doa a quem doer. Elas estão contribuindo para a transformação da humanidade inteira, tanto por sua fundamental e justa emancipação, quanto por libertar as relações entre mulheres e homens do poder excludente e da dominação que nos impedem de compartir igualmente a vida, os direitos e tudo que temos como bens comuns. Graças à diversidade e à vitalidade de movimentos feministas, as relações de gênero e o patriarcalismo como relações de dominação e violência contra as mulheres estão em foco na agenda política, econômica, social, cultural e religiosa ao redor do mundo.  Devemos às mulheres em luta questionamentos profundos e radicais aos fundamentos filosóficos e éticos que sustentam as grandes civilizações e a maior parte das religiões que vem moldando o mundo. Na hoje hegemônica civilização eurocêntrica, ocidental e capitalista, o patriarcalismo se combina com o capital e é parte intrínseca das relações de dominação e exploração existentes. As próprias esquerdas em luta contra a exploração e as desigualdades em que assenta o capitalismo foram obrigadas a rever suas “verdades” diante das estruturais relações de gênero combinadas ao capital reveladas pelos movimentos feministas.
Na semana emblemática para o feminismo no mundo, ao pensar na minha crônica, de forma quase incontornável, fui levado a enfrentar a seguinte questão: como nós, homens, estamos vivendo e digerindo o questionamento das relações de gênero pelas mulheres? Afinal, aqui estamos diante de uma questão que não se limita a ser uma perspectiva analítica e um devido reconhecimento da importância da emancipação feminina. Um aspecto fundamental decorrente da luta feminista por igualde, em termos reais e históricos, aqui e agora, de forma que não podemos evitar, é questão da dominação patriarcal como relação social, historicamente construída, e radicalmente ainda presente em tudo, em nosso cotidiano, na vida privada e na vida pública, na economia, na política, nas religiões e na cultura, em tudo enfim. E os questionados fundamentalmente somos nós mesmos, os homens! Eu que escrevo, você homem que me lê, meus amigos e colegas, meus irmãos… Ou seja, a metade dominante da humanidade! Não que todos nós sejamos machistas, dominadores e violentos, mas – e bota mas nisto – precisamos reconhecer que a relação social de gênero pende para nosso lado e nos beneficia. Ela está presente em tudo, da divisão de trabalho desde o recinto familiar e na economia como um todo, ao poder político na sociedade, dos “direitos legais e consuetudinários” (privilégios patriarcais, melhor dizendo) até no modo como amamos e vivemos com nossas companheiras mulheres. É isto que está sendo jogado no nosso colo e, queiramos ou não, questiona, sim, os nossos cotidianos e os modos como vamos levando a vida. Mesmo conscientes da dominação e opressão que podemos praticar como homens e, portanto, nos controlando, o fato é que a sociedade capitalista e patriarcal em que vivemos nos impõem lugares e tende a cobrar da gente respostas equivalentes.
Não sei se estou conseguindo exprimir a angústia que me tomou sendo consequente com o que as lutas das mulheres me fazem pensar. Ao olhar para o meu umbigo, meu coração e minha mente, na relação com minha companheira de 50 anos, no amor paterno que dedico às filhas e no descarado amor de vovô pela neta, procuro encontrar onde está escondido o meu próprio machismo, o meu patriarcalismo. Como as relações de gênero contaminam o modo como me comporto no trabalho e na vida pública? Será que meu ativismo cidadão contra esse capitalismo excludente e destruidor da natureza incorpora também e radicalmente a luta contra o patriarcalismo e as desigualdades de relações de gênero como condição sine qua non de outro mundo?
Esta angústia não temo em revelar publicamente. Anos atrás, exatamente em torno a um 8 de março, escrevi sobre o que minha neta Nina, pequena ainda,  com uns 6 anos talvez, sentada no meu colo e chorando me cobrou. Ela perguntou o porquê da injustiça – ela usou exatamente a palavra injustiça – contra as mulheres. Ela se referia ao modo como todos os meninos, desde seus irmãos, até os amigos da escola e seu próprio avô, eu enfim, a tratavam como se tivesse menos direitos – também palavra que usou no seu desabafo. Até hoje ecoa no meu coração e me perturba a pergunta da neta querida.  Em alguns outros anos de celebração do dia das mulheres revelei, através de crônicas, o quanto devo às mulheres parceiras políticas no processo do Fórum Social Mundial a incorporação de uma perspectiva de gênero nas análises e no ativismo e como sou grato por isto.
Não estou me desculpando publicamente, estou compartindo a angústia de ver que eu, os companheiros e amigos ainda temos muito a mudar em nós mesmos, nas práticas, nas vivências cotidianas, no modo de pensar e no como definimos prioridades e incidências na agenda pública.  As mulheres nos jogam no colo uma agenda radical incontornável rumo a uma civilização cidadã planetária.  Será que saberemos ser os companheiros necessários em tal transformação do mundo e de nós mesmos?
12/03/18

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