Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Na última semana, o IBGE divulgou dados sobre emprego no Brasil no quarto quadrimestre de 2017, com base na PNAD Contínua. De uma perspectiva de cidadania, continuamos mergulhados em uma grave crise de violação do direito ao trabalho de todas e de todos. Do total da força apta para trabalhar do país, 11,8% estava desocupada, que somada àquela que trabalha menos do que desejaria e poderia, temos uma taxa de subutilização de 23,6% no quadrimestre, aproximadamente uma pessoa em cada quatro do total. São mais de 26 milhões de brasileiros condenados a viver tal situação. Estamos diante de um câncer corrosivo do próprio sentido de ser integrante e conviver num mesma sociedade.
Um dado adicional pesquisado pelo IBGE chama a atenção. Trata-se do “desalento”, situação de quem nem trabalha e nem procura trabalho. Segundo a própria definição do Instituto, a população desalentada é aquela que está fora da força de trabalho, porque não consegue emprego, não tem experiência, é muito jovem ou idosa, não encontra ocupação onde mora, mas que, se conseguisse, estaria disponível para a vaga. Enfim, constituem o contingente das pessoas levadas a desistir do seu direito ao trabalho. Foram estimados em 4,3 milhões de pessoas em estado de “desalento” no Brasil no quarto quadrimestre de 2017. No primeiro quadrimestre de 2012 eram 1,9 milhões. De um ponto de vista de cidadania, o desalento agrava a questão do direito ao trabalho, pois leva a uma situação de sentir-se descartado, excluído e sem saída.
A partir de tais dados, fiquei pensando na extensão e nas diferentes situações de desalento, além do direito ao trabalho, que minam o vigor da cidadania na nossa sociedade. Ou, de modo positivo, considero estratégico compreender como se cria e aumenta a capacidade da cidadania em lutar, resistir e recuperar direitos diante de situações de violações vividas em seus territórios. Estou particularmente mergulhado em refletir sobre a agressão e o desmonte de direitos e de políticas nesse quadro de adversidades econômicas, sociais, culturais, como as que estamos vivendo no Brasil. O desalento surge como um importante indicador de perda e violação radical de cidadania, quando a pessoa desiste ou não acredita mais na possibilidade de ter direitos.
Assim, comecei a listar os muitos “desalentos” que crescem no seio de amplas camadas populares, do campo e da cidade, diante de direitos difíceis de alcançar. A lista pode ser longa, além de trabalho/emprego. Destaco o desalento com a busca do direito à educação para si e para seus filhos. Temos uma situação alarmante entre jovens desalentados, os “sem-sem”, sem frequentar escola e sem trabalhar. Temos os desalentos por causa da espera nas filas pelo acesso ao direito de saúde, que pode durar meses e nem acontecer. O desalento com o acesso ou permanência na terra diante da histórica lógica avassaladora de acumulação e concentração nas mãos de poucos donos de terras, gado e gente. Desalento com a segurança pública e com a polícia que deveria garanti-la. Desalento com a própria política, com os representantes eleitos, com a distante e quase inacessível justiça, distantes também do controle da cidadania. E por aí vão, muitos e diferentes desalentos num cotidiano de privações, exclusões e segregações.
Preocupo-me, particularmente, com o desalento com a própria democracia, capturada pela lógica do mercado e dos privilégios, pela ideologia do mérito, contra o sentido profundo da igualdade de direitos de cidadania para todas e todos, sem distinção. Estar desalentado com a democracia é desistir de sonhos e esperanças, de inclusão social, econômica e cultural, de sustentabilidade socioambiental, de outro país, com vida digna para todos que compartimos este maravilhoso território como um comum do Planeta Terra, cuja integridade ecológica nos cabe preservar para a humanidade inteira, de hoje e de futuras gerações.
Reconheço que estamos diante de um enorme desafio, pois os “desalentos” a enfrentar são muitos. O maior problema reside na desistência, na falta de motivação por buscar o que é negado ou acessado. Democracia se faz com motivação, com cidadania ativa, com disputa. O problema não é a disputa em si, dadas as nossas diferenças de situação, visão e valores. O mais grave é a falta de engajamento por não acreditar mais ser possível mudar o quadro que aí está. Votando ao que venho afirmando enfaticamente nos últimos anos, precisamos de imaginários motivadores e mobilizadores para exercer nosso papel de cidadania instituinte e constituinte. Como fazer isto diante dos desalentados?
Paro por aqui tentando descobrir alguma pista para avaliar o impacto dos desalentos na participação cidadã na política, na resistência ativa, naquela que busca mudanças possíveis desde aqui e agora. Será que abstenções e votos nulos vão aumentar nas eleições previstas este ano? Desalento não combina com viver plenamente.
Rio de Janeiro, 27/02/18