Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
A situação que vivemos no Brasil, de uma democracia totalmente encurralada, parece um fenômeno que vai se caracterizando como uma espécie de onda destrutiva que se alastra pelo mundo. Claro, as situações são muito diferentes tanto pelos atores como pelas formas, ademais das especificidades econômicas, sociais e culturais de cada sociedade. Entre os traços mais marcantes, que tornam comparáveis tais situações, destaca-se o descrédito na política e na democracia como bens comuns duramente conquistados. Outro, tão fundamental quanto, é a captura do poder estatal pela agenda neoliberal das grandes corporações econômicas e financeiras que dominam a economia mundial. No caldo que está sendo criado, as intolerâncias e os ódios fascistas, nacionalistas e religiosos ressurgem com grande impacto no espaço público, deixando na defensiva os imaginários democráticos de direitos, de diversidade com justiça social e igualdade, de participação e de busca de modos mais sustentáveis de produzir e consumir neste nosso planeta ameaçado pela mudança climática.
Na semana que se passou, por razões profissionais e de ativismo cidadão, participei de uma reunião em Berlim, na Alemanha. Trata-se de uma encontro anual de trabalho de um pequeno grupo de parceiros de diferentes regiões do planeta para pensar estrategicamente o papel da cooperação e solidariedade internacional no mundo de hoje. O grupo, criado pela Brot für die Welt – Pão para o Mundo, em português, uma das maiores agências não governamentais de cooperação internacional, das Igrejas protestantes alemães, com cerca de 2.500 parceiros em uns 100 países, foi um bom momento para colher alguns indícios mais precisos das ameaças recentes à democracia no seio da própria União Europeia. Foram conversas com amigos, algumas leituras e acompanhamento de alguns noticiários. Desculpando-me junto aos meus leitores pela falta da crônica semanal no fim de semana anterior, aproveito este espaço para socializar algumas observações e preocupações com o que se passa na Europa.
Começo pela Alemanha, país em melhor situação econômica de todo grupo da UE e que deu a melhor e mais positiva acolhida à gigantesca onda recente de imigrantes, fugidos das violências, guerras e fome na África, conflagrado Oriente Médio, Paquistão e Afeganistão, entre outros. A “crise dos migrantes” está longe de ser resolvida e cresce a intolerância e o ódio em toda a região. Nas recentes eleições alemãs, o espectro da crise tomou forma real no crescimento mais que surpreendente (12% dos votos em termos nacionais e maior votação em alguns estados regionais) de um verdadeiro partido de direita defensor dos valores e princípios nazistas, o AfD – Alternativa para a Alemanha. O partido de centro-direita da Ângela Merkel (democratas cristãos da CDU/CSU) teve perda política a ponto de estar difícil formar uma maioria governamental e continuar como primeira ministra. A SPD, dos históricos socialdemocratas, perdeu ainda mais e decidiu deixar a coalizão política que deu capacidade ao Governo Merkel até aqui. A opção que sobra, sem ter que convocar novas eleições, é fazer a esdrúxula aliança “Jamaica”, em referência às cores da bandeira daquele país (o preto dos democratas cristãos, o amarelo dos liberais de direita e o verde do partido verde, hoje mais pragmáticos). Pode uma salada assim dar certo? Ou estamos, na Alemanha, diante de uma deterioração da democracia em que tudo pode acontecer, até uma aliança sem organicidade mínima. Claro, tudo para se evitar o crescimento mais que surpreendente da direita e perda do sentido democrático de busca do bem comum. Sem a coalizão “Jamaica” sobra o imprevisível de uma nova eleição.
Aqui vale ressaltar que a Alemanha de Merkel tem lá sua marca destrutiva da democracia, que a história não deixará de cobrar. Refiro-me às políticas de ajuste neoliberal impostas para as mais débeis economias do Sul da Europa. Pego o caso da Grécia pelo seu brutal impacto. Dá para debitar ao aval político de Merkel a imposição de um ajuste radical pela “Tróika” (FMI, Comissão da União Europeia e Banco Central Europeu) à Grécia. Tinha ganhado as eleições um esperançoso governo democrático de esquerda, o Syriza, hoje um partido morto na frente de um governo que administra um verdadeiro desastre em nome da saúde dos mercados e bancos.
No entorno da Alemanha, a situação já havia se deteriorado muito, seja por governos de direita ou pelo enorme crescimento de forças autoritárias, neoliberais e fascistas. São emblemáticos os casos da Hungria, da República Tcheca, da Holanda e Áustria, e tudo o que está passando politicamente no Norte da Europa, somado ao “Brexit”. Um quadro de ameaças crescentes à democracia, conquistada após a carnificina da II Guerra Mundial.
Destaco aqui ainda a situação da Espanha. Não bastasse o que o povo espanhol sofreu com a crise e o ajuste, tendo o convicto neoliberal Rajoy como líder, hoje formando o governo com o desfigurado PSOE – os socialistas da oposição à ditadura de Franco e artífices da transição democrática -, tem agora o perturbador processo de autodeterminação da Catalunha como ferida democrática aberta. Em que isto vai dar é uma grande incógnita. Afinal, a Espanha nunca conseguiu resolver bem as suas diferenças internas, sem passar por intensos conflitos e muita violência. O quadro que surge é de uma União Europeia que perdeu sua inspiração democrática na solução das históricas diferenças, intolerâncias e desigualdades. Isto é muito ruim para a democracia e para o mundo como um todo.
Termino com o caso da França, pelo que pode dizer a nós brasileiros. Macron – um verdadeiro arrivista em termos políticos, apesar de membro da elite política francesa – ganhou as eleições num vazio, praticamente sem partido organicamente constituído. De orgânico havia a Marie Le Pen, da uma direita nacionalista e racista assumida, contra a democracia, a União Europeia, os migrantes. O Trump dos EUA em relação à Le Pen da França é um comediante apenas, a serviço das obscuras forças de direita radical atuando por trás. A direita francesa expressa por Le Pen vem crescendo sistematicamente, captando o imaginário e se afirmando como alternativa, em nome de um certo purismo nacional e cultural à la francese, que tem adesão nos meios tradicionais da sociedade colonialista francesa. Macron derrotou, de fato, a hegemonia disputada continuamente entre centro-direita e centro-esquerda e, ao mesmo tempo, a ameaça imediata da Le Pen. No entanto, seu discurso semelhante ao nosso Dória, de governo eficiente e sem compromissos políticos, colocou aos franceses a indigesta agenda de ajuste neoliberal nas políticas, taxas e impostos, na legislação trabalhista e previdenciária, base do Estado de Bem Estar. Gozando de uma maioria legal no Parlamento – nada legítima, já que a maioria nem votou – Macron pode fazer quase tudo o que propor, sem nenhum compromisso com a essência da democracia. Um desastre que vai custar caro para a França.
Enfim, vendo o mundo a partir da Europa, o espectro da barbárie toma forma real e o pior pode estar na nossa porta. A democracia parece que está se tornando uma alternativa descartável, constantemente assaltada por forças antidemocráticas. Gostaria de pensar o inverso e aposto na possibilidade do contrário, de uma democracia verdadeiramente cidadã, com capacidade de transformação em nome da igualdade e da justiça socioambiental. Preciso encontrar urgentemente motivos para ainda acreditar no sonho de outro mundo possível. Afinal, a relativamente recente tomada de consciência de nossa interdependência como humanidade e do destino comum, tendo o Planeta Terra como bem comum maior a defender em sua integralidade, nos impõe eticamente a necessidade de resistir e acreditar. Mas é preciso que estejamos preparados: que tsunami política temos que enfrentar!
Rio, 30/10/17