Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Amar é viver e conviver. É sentimento e relação ao mesmo tempo. É querer e ser querido. É dar-se. Está em tudo e em todas e todos. Até sofrer a gente sofre com amor e por causa do amor. É o olhar, o gesto, o carinho, a atenção, tudo criando uma teia de conexões entre pessoas que gera bem-estar, prazer, participação, proteção e segurança. Amar é uma complexa teia humana invisível de energia do cuidado que conecta pessoas umas às outras e dá aquele sentimento do bem viver. Pode ser a conexão de casais, mulher e homem, mulher com mulher, homem com homem, tudo junto e ao mesmo tempo. É a teia do cuidado amoroso que liga a mãe e o pai com filhas e filhos, de filhos e filhas com mães e pais, de todos com avós e avôs. A família, em sua multiplicidade de formas de união, tem no centro o amor que gera a energia do cuidado. Tudo isto extrapola as relações afetivas mais próximas, na família, no lar, no cotidiano. O amor, com sua energia invisível, gera amizade e respeito entre diversas e diversos, cria o espírito de comunidade, do comum compartilhado como um bairro, uma favela, uma vila, uma cidade, um país, a humanidade.
Mas existe o desamor, pior, o ódio, as dominações, as discriminações e as intolerâncias de umas e uns em relação às outras e aos outros, com as e os diferentes, sejam grupos, estratos sociais ou povos. Nosso modo de nos organizar política, social e economicamente nos leva à violência e à guerra. A tortura, o sofrimento imposto e a morte – é forçoso reconhecer isto – ainda são maiores que o amor, este lado essencialmente humano de ser e viver. Aliás, destroem a teia do cuidado que só amor pode gerar, seja entre seres humanos, seja entre humanos e a berço de toda vida que são os comuns naturais do Planeta Terra que nos é dado como um dom. Por quê?
Toda esta minha divagação, mais do que análise e reflexão, foi motivada ao pensar no Dias das Namoradas e dos Namorados. Deveria é estar fazendo poesia para celebrar o amor nesta ocasião. Reconheço que me sinto um poeta frustrado e também, seu correlato, um músico frustrado. A vida foi muito generosa comigo, mas me levou por caminhos distantes da poesia e da música que estão dentro de mim. Vivo e penso o amor, sou profundamente grato por me sentir amado e poder amar. (Acho que há gente que não me ama e até pode odiar, mas isto não me afeta). O problema é que acabei mais treinado para a filosofia política, a democracia e a educação cidadã e, sobretudo, a sociologia política na análise de conjunturas. Aprendi a praticar isto tudo com amor e engajamento total, mas com pouca poesia e música. Assim, me resta pensar o amor com o instrumental analítico que acumulei.
Pensando bem, o direito de amar e ser amado tem muito a ver com emancipação social e política. Ele é parte do direito fundamental da liberdade, de escolher quem a gente quer ser e como, no caso, o modo de amar e ser amado, sem restrições. As pessoas lutam por liberdade, pelo direito civil e político de praticar a liberdade, quando escolhem quem e como amar. Assim como todo direito, para ser igual e de todos, ele é uma relação social que implica em reconhecer em todas e todos o mesmo direito que é da gente. Para amar e ser amado a gente deve garantir que todo mundo também tenha igual direito.
Por que, então, o Estado se mete nisto? Deveria ser para garantir de todas as formas o livre direito de amar. Mas não, na realidade histórica de nossas sociedades, onde desiguais relações de poder político e econômico geram dominações e exclusões, o Estado tende a legislar sobre os corpos humanos e impõe regras limitadoras ao próprio amar. Ao invés de mais liberdade, nos impõe mais limites de praticar a liberdade do amor, uma das condições humanas essenciais do viver.
O objetivo é legalizar a intolerância e não o direito.
Até parece absurdo trazer para minha crônica uma reflexão política sobre o direito de amar e ser amado. Vou provar que não é. Começo pela agenda no Congresso Nacional. Está na mesa uma proposta de enquadramento legal do que seja família entre nós brasileiras e brasileiros. Se fosse para reconhecer a multiplicidade de formas e garantir a proteção do Estado a todas elas, de aceder a políticas públicas de proteção a todas os sujeitos de direitos aí envolvidos, seria até de saudar. Mas não, a proposta é de restrição, de negação de direito de existência legal de famílias homoafetivas. Portanto, contra o amor em última análise, baseada na intolerância com a homossexualidade, sempre em nome de preceitos religiosos, quando a questão é de essencialmente de cidadania numa democracia que se preze. O objetivo é legalizar a intolerância e não o direito. Na esteira, até parece que se quer tornar normal e tolerável matar alguém por sua opção homossexual, uma das formas de violência mais odientas que temos em nosso meio. Em nome de que mesmo? Decididamente, não em nome da liberdade e do amor!
Mas vamos adiante. Trago aqui a questão do aborto, onde questões políticas de liberdade estão entrelaçadas com grandes questões éticas. Não cabe ao Estado legislar sobre limites à liberdade e nem sobre questões éticas. No viés de legislar sobre corpos, especialmente das mulheres, criminalizando o aborto, o Estado fere duplamente a cidadania das mulheres: em sua liberdade de escolha de amar e de assumir inteiramente as consequências da prática de liberdade com seu corpo, bem como em suas escolhas éticas íntimas a respeito. Por que criminalizar o aborto? Não é, como alegado, em nome do direito à vida e muito menos da liberdade de amar. É em nome de opções éticas e religiosas, elegendo tais opções acima da fundamental liberdade, sem a qual nem cidadania existe.
A questão está longe de acabar aqui. Ouso dizer que para o Estado e seus agentes, mas também no seio da sociedade civil, o estupro de meninas e mulheres é mais justificável do que o aborto. Aceita-se a violência, ou melhor, encontram-se justificativas à violação dos corpos femininos por homens, como se delas fosse a culpa, mas de jeito nenhum aceita-se o aborto, de novo como se fosse um crime de mulheres. Aqui estamos diante do absurdo do absurdo. O caso ocorrido recentemente com a violação em massa de uma adolescente, no Rio, e a divulgação das imagens é simplesmente estarrecedor. Aqui é de se perguntar: por que falhou o Estado em garantir o direito de amar e ser amada, no caso? Simplesmente, porque o Estado, a polícia, as leis, o Judiciário tem um viés patriarcal e machista nada cidadão, de não reconhecimento do direito de liberdade de amar e ser amado.
Somos diversos e tão diferentes como mulheres, homens e toda a mistura que isto pode produzir. Temos tamanhos, cores, origens étnicas, culturas, ideologias, opções e identidades. Somos o que somos. Por que o Estado tem que meter o bedelho nisto tudo? Para reprimir e dominar. Isto nasce entre nós, entre humanos, em nossas sociedades. Somos nós mesmos que justificamos discriminações de toda espécie. E isto não é por amor e, muito menos, pela vida. É porque estão em nossas mentes e corações princípios e valores, sentimentos, atitudes e práticas que limitam a liberdade de amar e ser amado que o Estado acaba legalizando o não direito. Aí está o dilema! O Estado, para o bem da verdade filosófica, política e sociológica, sempre é e será uma criação. Está no seio de nós mesmo tanto o amar como teia da vida, como a intolerância e o ódio com o jeito de ser de outras e outros, sua cor de pele, sua cultura, seu modo de amar. Enfim, para amar plenamente temos que extirpar de dentro da sociedade aquilo que nega e acaba destruindo a possibilidade de direito comum do amor no convívio humano.
Os dilemas em torno ao direito de amar e ser amado passam por nós mesmos antes de virar um problema de Estado ou da economia. Conclusão difícil. Ressalto, porém, que somos muitos a amar e acreditar que a humanidade pode ser muito, muito mais amorosa e, portanto, ainda mais humanitária, de bem com si mesmo e com o Planeta Terra, base material vital de nosso amar. Com amor e carinho a todas e todos que tem paciência em me ler e compartem meus pensamentos, feliz Dia das Namoradas e dos Namorados!