Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Que ano este! Estamos mergulhados em uma enorme confusão, de muitos desencontros e de poucos consensos. Isto vale para nós, aqui no Brasil, mas é o que prevalece na região e no mundo inteiro. Estamos sintonizados de forma planetária – ajudados pelas novas tecnologias de informação e comunicação – neste vai e vem de gradativa perda de sentidos e rumos do viver em coletividade, com ameaças que rondam, mas não têm configuração precisa. Enfim, como os anos não passam de convenção humana milenar, seria bom podermos acabar com este 2015 e começar logo outro. Ao menos teríamos um alívio momentâneo de celebrações, já que na essência a crise instalada só parece apontar o pior, cada com mais surpresas trágicas até e ser daquelas de ciclo longo, com muita violência e destruição no caminho.
Como ativista radicalmente democrático, acreditando que “outros mundos são possíveis” e cronista do cotidiano, sinto que não tenho nada para falar da conjuntura, especialmente a do Brasil. A volatilidade de fatos e processos é tal que tudo parece mudar e nada muda ao mesmo tempo. Dar atenção a notícias é como se desinformar ainda mais. Sorte é que a experiência acumulada e até a teoria refinada por tal experiência dão uma chave de leitura para respirar na confusão e tentar olhar mais longe. Mas isto não conforta, pois no horizonte algo ainda pior pode emergir.
Sou nascido do final da II Guerra, em agosto de 1945, já da era atômica. Mas sou da era do primeiro esforço da humanidade em tentar criar uma organização multilateral para valer quando o fim da guerra era eminente, a ONU, em 1944, e em definir uma carta constitucional universal, a Declaração dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948. A ONU nasceu contaminada pelo domínio do Conselho de Segurança, com cinco país dotados de armas nucleares com poder de veto. Os direitos humanos tem uma inspiração boa, mas foram contaminados pelos privilégios dos países dominantes, confundidos como se fossem direitos universais. Dado este viés, nada vingou de forma legítima e para valer. A maluca soberania nacional, velha de cinco séculos, justifica tudo, em especial a maior violação de direitos humanos e de cidadania em nome do interesse nacional. Tudo isto não me impediu de celebrar com família e amigos, os meus 70 anos, esquecendo momentaneamente esta conjuntura endiabrada e prenhe de muitas contradições, com fumaças que encobrem a visão.
Olhando para o mundo, com os olhos que o Fórum Social Mundial me deu, vejo o perigo rondando. A globalização neoliberal que aprendi a combater parece algo de sete vidas. Hoje, depois da grande crise de 2007-2009, está mais viva e destrutiva do que nunca. O lado cassino da economia capitalista, gerador da crise, é o grande vencedor. Grandes conglomerados financeiros impõem políticas a seu serviço em toda parte, acima de governos democraticamente eleitos, inclusive nos países dominantes desenvolvidos, como os da Europa, por exemplo. Os emergentes dos Brics rapidamente estão perdendo capacidade, tanto por ataques dos países dominantes como, sobretudo, por pretender fazer o mesmo capitalismo, aceitando as regras estabelecidas, onde sempre vençam os mais selvagens e fortes. Rússia e Brasil já estão implodindo por falta de condições de competir do mesmo modo. Será que Índia e, sobretudo, China vão se sair melhor? Parece difícil se não impossível.
Na conjuntura mundial selvagem em que vivemos são os extremistas que ganham destaque. Ou seja, penso que a barbárie está perigosamente mais próxima do que se pensa. Este é o pior cenário, mas tornado plausível pela incapacidade das elites do mundo apontar outro caminho. Que falta nos fazem líderes políticos que pregam algo com sentido para a humanidade inteira! Sempre podem surgir, mas este ano de 2015 não apontou nenhum. Aliás, apontou para guerreiros. Uma guerra de extremistas e racistas contra outros extremistas e fundamentalistas prontos para matar e morrer, com ingredientes de xenofobia e intolerância com a diversidade de todo tipo, se tornou possível após os últimos atentados. Os que mais sofrem – que o digam os que fogem daquele caldeirão em que se transformou o Oriente Médio, da grande civilização árabe-islâmica – são vistos, ao mesmo tempo, como os culpados pelas mazelas de um mundo dominado pelo capitalismo incapaz de abrigar a humanidade inteira. Como descendente de imigrantes expulsos pela miséria e fome da Europa no século 19, vivo o drama dos imigrantes que fogem da miséria e guerra no Oriente Médio como um meu drama pessoal. Que racismo e que intolerância podemos, como humanidade, alimentar! Até onde?
Este ano de 2015 demonstrou cabalmente a insustentabilidade de estratégias de fazer justiça social com a distribuição de migalhas do crescimento capitalista. Isto vale para o Brasil, o país que talvez tenha sido o mais consistente em formulação de novas políticas sociais de inclusão – ao menos no consumo, se não na cidadania plena – como para o conjunto dos países com governos de esquerda na região da América do Sul. O sonho acabou antes de vingar plenamente. Hoje, tudo aponta para a desconstrução de conquistas, por mínimas que elas tenham sido. A direita, a velha direita dos privilégios, está viva e agressiva. As grandes manifestações no Brasil mostram que a direita tem capacidade de criar agenda maior do que no círculo de ativistas de esquerda admitimos.
No Brasil, Dilma ganhou as eleições de 2014, mas verdadeiramente não levou. Aqui vivemos o dia a dia dos extremos, de altos e baixos e muita confusão sem fim. Sorte é que nossa institucionalidade democrática está revelando forças que nem consciência tínhamos do quanto são consistentes e importantes. Temos um Judiciário bastante autônomo e ciente de seu papel institucional de garantidor da democracia. Temos uma Polícia Federal que finalmente se revela fiel em garantir o bem público, acima dos poderes de ocasião. E nós todos, cidadãs e cidadãos, mesmo confusos, acreditamos que algo de bom ainda pode acontecer. Mas que papelão do governo e, sobretudo do Congresso Nacional! Penso que o governo não governa porque aceitou ser aprisionado pelo corporativismo e patrimonialismo que tomou conta do Congresso. O verdadeiro câncer destrutivo da política e dos sonhos de um Brasil melhor está no Congresso. Os partidos não são partidos, pois as bancadas dos “Bs” está acima de tudo: Boi + Bíblia + Bala. O presidente Cunha é um mafioso extremamente esperto à frente do que deveria ser a instituição democrática de representação da cidadania por excelência. A fidelidade política não se mede no Congresso, ao menos neste 2015, pelo apoio a ideias e valores éticos fundantes de um futuro, mas pelos privilégios e vantagens de poder no mais imediato possível. Olhar para o Congresso é como olhar para onde nada, absolutamente nada, pode surgir. O diabo e intrigante é que foi a cidadania brasileira que elegeu tal Congresso… com financiamento de empresas, que transformou a política algo em mercantilizado a seu serviço. Até quando? Nós podemos decidir pelo resgate da política, dos partidos, do voto, das eleições, dos mandatos que nos representam, enfim, da democracia, como bens comuns políticos criados como indispensáveis do bem viver em democracia substantiva. Queremos isto?
O que festejar, então? Não consigo ver. A última decepção deste ano maluco, onde a barbárie parece tomar o lugar do convívio democrático, foi produzida pela COP-21, sábado finalizada em Paris. Os representantes de 195 países foram capazes de chegar a um consenso sobre vagos compromissos, nada vinculantes. Enfim, o risco de ser pior em 2016 e anos vindouros está mais perto do que a gente imagina. Como além da política barbarizada pode vir uma mudança radical nas condições socioambientais, quem sabe a passagem do ano inspire muitos a se prevenir para o pior em termos de mudanças climáticas. Motivos de festa a gente sempre pode encontrar. Portanto, Boas Festas de Fim de Ano a todas e todos!