Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Conselho Curador do Ibase
A sistemática desconstrução de conquistas democráticas de direitos e de políticas regulatórias do viver em coletividade, com igualdade na diversidade, e em respeito aos bens comuns, parece não nos espantar. Os discursos carregados de ódio e intolerância ou o vergonhoso e travestido nacionalismo verde e amarelo, que se curva ao imperialismo americano, mesmo primário e tosco de Bolsonaro, de seus filhos “zero alguma coisa” – como o próprio pai define – e do obscuro guru ideológico, apesar de causar indignação lá no íntimo, já nem provocam denúncia pública contundente. Ficamos aguardando a notícia da última declaração ou proposta governamental, mas mais para rir do que para levar a sério. Estamos diante de um sorrateiro processo de legitimação de absurdos como forma de fazer política. Aí mora o perigo, pois é por se fazer parecer normal e dialogar com um difuso senso comum de ressentimentos e frustrações no seio popular que o fascismo se legitima. Tal situação, em termos de hegemonia política, pode não ser desejável, mas é conveniente ao punhado de “donos” de nosso país, cujo único critério de conduta, sem ética alguma, é o tamanho de seus ganhos.
O problema central que estamos vivendo é a total perda de substância e sentido político do contrato social democrático representado pela Constituição de 1988. Não foi nenhuma maravilha, mas o possível como superação do longo período ditatorial. O fato é que se tratava de um marco de virada e ponto de partida, que abria novos horizontes e rumos, prenhe de contradições, mas nos dava a democracia como método de construção de outros caminhos. Avaliando, nesse momento, o que foram as últimas três décadas, reconheço e afirmo publicamente que fracassamos. Não foi por limites da institucionalidade democrática em si – sempre algo histórico e, por definição, acordo temporário. Mesmo não se limitando a este elemento fundamental, pois existem muitos outros e precisam ser criticamente avaliados, afirmo em alto e bom som que nos faltou ousadia e ambição. Como cidadania ativa, exercendo nosso papel instituinte e constituinte da democracia como processo em permanente disputa, não soubemos ou, pior, renunciamos de tomar o contrato de 1988 como base e ponto de partida para consolidar uma hegemonia democrática e com capacidade transformadora e emancipadora em termos políticos, sociais e culturais. É simplificador afirmar isso, mas se trata da essência do problema. Não cabe aqui aprofundar vários e complexos processos em que nossa democratização acabou sendo manietada de inúmeras formas em termos governamentais, perdendo capacidade de alimentar imaginários mobilizadores e poder transformador de estruturas e processos. Tornou-se fácil destruir a frágil hegemonia democrática, abrindo a porta à volta com força renovada do velho autoritarismo excludente, patriarcal, machista e racista, com sua essência colonial, extrativista e destruidora no trato do território, bem comum vilipendiado. Não é demais lembrar que tudo isso com clara cumplicidade do velho e pouco democrático poder militar.
Minha questão aqui é alertar para uma questão política e cultural no processo em que estamos empantanados. Penso que o absurdo das medidas do atual governo começa a virar rotina. E o absurdo está virando normalidade. É um absurdo que os princípios e valores éticos fundantes da democracia e centrais para uma cidadania compartilhada sejam sistematicamente negados nos discursos e nas propostas. É um absurdo que a nossa já frágil institucionalidade democrática, os direitos conquistados, as leis e normas, as políticas, tudo, enfim, sejam sistematicamente atacados com propostas de MPs, decretos, e práticas governamentais efetivas. É um absurdo negar o racismo e a violência contra mulheres. É um absurdo nos submeter ao poder dos EUA como política de Estado e oferecer o território brasileiro à rapina das grandes corporações extrativistas globalizadas. É um absurdo legalizar agrotóxicos sem consideração de seus impactos na saúde e na natureza. É um absurdo desmontar todas as políticas de proteção do enorme bem comum natural que nos cabe cuidar. É um absurdo cortar recursos em saúde, educação, ciência e cultura, sem o que não podemos nos construir como povo com igualdade de cidadania em nossa intrínseca diversidade. É um absurdo pensar que segurança como direito se efetivará com estar armado e chegar a propor o rearmamento dos donos de gado e gente. A lista é longa e parece sem fim. A cada dia ela cresce e já parece uma normalidade no governar do bolsonarismo.
O perigo que gostaria de alertar não é somente sobre o caráter destrutivo do “pacote de absurdos” proposto pelo governo Bolsonaro. Estamos diante de uma estratégica de poder com medidas absurdas e autoritárias que podem colonizar mentes e corações, perverter valores e princípios éticos, a compreensão do que seja direito e igualdade, o lugar e o papel da cidadania. Elas até podem nem passar pela nossa “federação de interesses corporativos” de bancadas de que é composto do Congresso Nacional. O importante para a legitimação dessa nova forma de fascismo conquistar hegemonia é fazer com que as tais medidas autoritárias, excludentes, carregadas de ódio e intolerância, acabem adquirindo áurea de normalidade e necessidade até, deixando de ser debatidas e virando senso comum legitimador.
Tendo presente isto, começo a ser invadido pela idéia de que estamos diante de um governo oportunista, sem dúvida, mas que devemos levar a sério em seu poder destruidor, abrindo o caminho para o mais execrado fascismo. Muitas das propostas não visam virar políticas em si, mas possibilidades alternativas, uma espécie de ideário para a galera que considera Bolsonaro como um mito. No “vazio cultural” que estamos vivendo, o perigo reside aí mesmo, onde alternativas a este governo seja algo da mesma espécie. Afinal, o processo que nos levou ao desastre não começou no processo eleitoral de 2018, mas vem de muito mais longe. Hoje tem esta cara, mas a barbárie pode revelar outras caras e ser ainda mais radical.
Precisamos retomar o nosso protagonismo como cidadania. Como lembro muitas vezes no final de minhas crônicas: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Não podemos esperar para transformar resistências em ação efetiva de disputa de sentidos e espaços. Outro Brasil é possível!
Foto: Arquivo Ibase