Manifestantes começam a se reunir para apoiar o ex presidente Lula durante seu depoimento ao Juiz Sérgio Moro, em maio de 2017, em Curitiba/PR (Foto: Mídia Ninja)

Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

Nesta semana, em Porto Alegre, vai se realizar o julgamento, em segunda instância, de Lula no processo em que foi condenado pelo Juiz Sergio Moro, na operação Lava-Jato. Não sou advogado e nem jurista para entrar nas tecnicalidades do processo. Para mim é convincente o que afirmam grandes personalidades jurídicas e estudiosos do direito sobre o atropelamento de leis e normas nesse processo, além de falta da devida isenção republicana, mostrando um viés político no julgamento, para influir no processo eleitoral.
Olho para a gravidade do que está ocorrendo de uma perspectiva de cidadania e democracia. Independentemente do resultado, o processo, em nome do combate à corrupção, tem um viés de ilegitimidade democrática de origem, por se prestar a ser parte do processo restaurador da “ordem” conservadora e autoritária, mais do que zelar pelo bem público e a integridade democrática. No caso do processo contra Lula, não dá para esconder que o objetivo principal é atender àquelas forças interessadas em antecipar o resultado eleitoral.  Trata-se de tirar da cidadania o direito de decidir se Lula pode ou não disputar o nosso voto, como os muitos outros candidatos e candidatas que teremos em outubro de 2018. Num certo sentido, a nossa democracia e a cidadania brasileira que é estão no banco dos réus. Afinal, gostemos ou não, independentemente de saudosistas autoritários, de setores profissionais e de segmentos das altas classes que temem pelos seus privilégios “adquiridos”, dos grandes meios de comunicação, de bolsas e banqueiros, das corporações econômico-financeiras, dos grandes extrativistas da mineração e agronegócio,  foi a cidadania majoritária que, pelo voto, legitimou Lula como líder do PT emergente, que fez dele um dos grandes personagem políticos brasileiros de nosso tempo e que está lhe dando vantagem na disputa eleitoral que se avizinha. É este o contexto do julgamento desta semana.
Aqui é necessário reafirmar princípios políticos fundamentais que dão substância às democracias. Nelas, a soberania popular é condição sine qua non. Quem institui e constitui a democracia é a cidadania, nunca o Estado. Este é derivado, tanto o Legislativo como o Executivo e o Judiciário. Como todo constructo sociopolítico, a democracia é um produto histórico do fazer política, movido a contradições. O fundamental é que na sua essência esteja vigente o princípio da soberania cidadã sobre o poder, qualquer que seja. Na falta disto, a própria democracia perde substância. Estamos vivendo num contexto assim desde o impeachment da Dilma, legitimamente eleita.
O pacto conciliador está no berço da nossa Constituição de 1988, nascida da resistência à ditadura militar instaurada em 1964. Digamos que foi uma ruptura a meias, sem botar a limpo e sem condenações dos crimes e criminosos da ditadura. Um pacto frágil, sem dúvida, mas constitucional e o possível naquele momento histórico. Assim, bem ou mal, a democracia floresceu entre nós. Não operamos as grandes transformações demandadas e necessárias no capitalismo selvagem aqui prosperando, destrutivo e excludente. O fato é que transformações profundas estavam sempre postas como uma possibilidade no horizonte, uma vez instaurada a garantia cidadã da democracia e ela, por definição, pode tudo mudar.  Por isto, politicamente é fundamental reconhecer o despertar de grandes potencialidades, naquele então, na fraturada sociedade brasileira, profundamente desigual, racista, machista e dos donos de “gado e gente”.   Tínhamos voltado a sonhar e, sobretudo no seio da sociedade civil, a expandir a densidade organizativa, dando visibilidade a uma riqueza imensa de diferentes identidades e energias em termos políticos e culturais em busca de igualdade e de reconhecimento de direitos de cidadania.
Tal despertar pareceu promissor para se engajar numa democracia mais substantiva. Porém, as grandes contradições que permeiam nossa história ressurgiram com força, pela ameaça que uma cidadania florescente passou a significar. Antes de completarmos 30 anos de uma democracia conciliadora, deu-se a ruptura, atropelando acordos políticos e constitucionais instituídos. Agora, estamos vivendo um verdadeiro processo de descrédito na política e na própria democracia. Através de negociatas, nada republicanas nem democráticas, as forças que tomaram o poder de assalto puseram em curso a desconstitucionalização e o desmanche das conquistas de direitos embutidos na Constituição de 1988, dando as costas para a cidadania. Tudo com a cumplicidade do Poder Judiciário, fato que importa ter presente aqui. A intolerância e o ódio estão escancarados no nosso cotidiano. A cidadania está acuada e a democracia fenece. Fomos empurrados às trincheiras de resistência, denunciando e protestando, sob ataque contínuo. Sabemos que resistência de democratas convictos é desfeita. Agora precisamos, nós mesmos, nos refazer como sujeitos cidadãos e, ao mesmo tempo, temos que repensar nossos ideários motivadores e mobilizadores, com olhar de longo prazo, criando novas e potentes estratégias de radicalidade democrática.
A ativa participação da cidadania, através das mais diversas formas, praticando a liberdade e o direito de disputar e decidir, criando correlações e acordos possíveis, é o motor da democracia. O fazer democrático depende de cidadania livre, livre para se organizar e participar, se manifestar nas praças e ruas, nos meios de comunicação e na cultura, nas redes sociais e fóruns, no livre debate de ideias e propostas, nas eleições através do voto de igual valor cidadão. Transformar a nossa intrínseca diversidade social, nossas diferenças de visões e interesses, em forças construtivas é o maior desafio que temos.
Mas desde aqui e agora. Nenhum direito a menos! Cabe a nós decidir o melhor para o Brasil e seu lugar no mundo.
Rio de Janeiro, 22/01/18

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