Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

Continuo enojado com a crônica policial e jurídica que, através da grande mídia, invade o espaço público e criminaliza a própria política. Que a política está corrompida é verdade, mas falta enfatizar o outro lado, o do poder corruptor das grandes corporações econômicas e financeiras, que mercantilizaram a política e mantêm em suas mãos “invisíveis” o poder real sobre o Estado, as instituições e políticas públicas, os partidos e as representações. O viés com que a mídia trata a questão visa, em última análise, destruir a própria idéia de que é na política e pela política que podemos sonhar e propor outro país, mais democrático e cidadão, mais justo e inclusivo, de bem viver e sustentabilidade social e ambiental. A grande mídia reforça a ideia do senso comum de que a política é cara e que menos Estado e mais mercado é o que o país precisa. Ou, ainda, sutilmente, ela destila a ideia de que o Estado deve ser eficiente como policial repressor, deixando a economia e o mercado criar bem estar para todos. A violência descontrolada no Rio de Janeiro é retratada com tal lente, ignorando as causas mais profundas da crise.
A vida segue, apesar de tudo. Conjunturas adversas também fazem parte da vida. Só que o viver é por excelência mudar. O curso da vida não está dado, ele se faz ao viver. O que não podemos é aceitar o que nos é imposto neste momento e desistir de construir outros caminhos que nos levem a outro amanhã. O processo vai ser longo, muito longo, mas precisamos começar aqui e agora a construir trincheiras onde voltemos a praticar a liberdade e a ousadia de pensar para disputar estrategicamente a hegemonia com as forças sociais que dominam nosso imaginário hoje. Não dá para voltar ao que já foi. Precisamos examinar criticamente o que foi feito, como foi feito e o que deixamos de fazer. Mas, sobretudo, precisamos rever as condições em que se gestou o processo que permitiu um monumental retrocesso e essa espécie de “fascistização” da democracia e da política no Brasil. Nossa tarefa de ordem ética, política, intelectual e cultural exige tempo e precisa vir combinada com um ativismo cidadão molecular. Trata-se de começar com conversas e debates à nossa volta, em pequenos grupos, no trabalho, entre amigos, tarefa paciente, no dia a dia, capaz de descolonizar nossas cabeças e minar o modo de pensar e as visões dominantes, presentes em tudo o que lemos, vemos e ouvimos.
Estamos no início da primavera. As árvores já estão brotando apesar do forte calor e falta de chuvas. A poluição do ar fica acumulada em cima da cidade, formando uma espécie de névoa seca em forma de nuvens de baixa altitude. Saindo da cidade, para onde a gente olha vê fumaça de queimadas. A falta de água já é sentida, tanto para consumo humano como nos reservatórios das hidrelétricas que geram energia para acionar nossos ares condicionados. Logo, vamos sentir o impacto de tudo isto nos preços de hortaliças e frutas. É a vida, sem dúvida. Mas que vida é esta? Será que cuidamos adequadamente dos territórios em que estamos vivendo? Trago estas questões para apontar uma dimensão fundamental da vida que parece relegada, deixada num plano secundário, bem menor até, para quando o desastre da mudança climática for irreversível em termos de manutenção das mesmas condições naturais que encontramos quando nascemos para nossos filhos, netos e todas as gerações futuras.
Lembro tudo isto, a partir do cotidiano, para destacar uma questão fundamental em nossa tarefa de contra hegemonia. Sem dúvida, a economia, como modo de nós humanos obtermos os bens e serviços que precisamos para viver, é uma dimensão essencial. Mas não existe economia no abstrato. Ela é uma combinação de bens que a natureza generosamente nos dá, com trabalho humano para extrair, catar, transformar, tornar acessível e tudo mais que for necessário para que possamos consumir e viver. Ou seja, não existe economia sem troca de gente com a natureza. Somos natureza e dependemos da natureza para viver. Por isto, como tudo na biosfera, participamos da imensa rede de relações e interdependências entre seres vivos e sistemas ecológicos que criam o ambiente do viver. As economias de humanos, dotados de consciência e capacidade de produzir ciência e técnica, só fazem potencializar a rede em seu favor. O problema é que estão fazendo de modo destrutivo da rede e da capacidade de regeneração dos sistemas ecológicos naturais.
Aí reside o problema ou a grande questão civilizatória em torno da economia. Não vou falar de passado, pois vivo hoje e penso o amanhã. E o que temos hoje é uma economia que ameaça a integridade da natureza – sine qua não há vida humana e nenhuma forma de vida – e, de um ponto de vista humano, desvirtuada, pois não serve ao bem estar coletivo, de todas e todos, mas para a acumulação de riquezas nas mãos de poucos. É uma economia destrutiva e excludente.
Aqui cheguei à questão crucial no nosso esforço de contra hegemonia. O problema central que temos é o capitalismo, hoje globalizado, que reina vitorioso com suas idéias de desenvolvimento econômico sem limites, como se isto fosse possível. Não vou entrar nos detalhes, mas o ideal de desenvolvimento nada mais é do que acentuar a destruição ambiental e a desigualdade social, ainda mais na forma atual de total domínio e liberdade de atuação dos detentores de capital. Trata-se de um princípio radical de negar liberdade, igualdade e bem estar a todas e todos em nome da liberdade para os mais fortes na arena do mercado, sem restrições, tudo alicerçado na quase sagrada propriedade privada e do tal mérito. Há bom senso, segundo Gramsci, no senso comum com que vê mais roubo do que mérito na origem das grandes fortunas dos tais 1%. A propriedade privada é privilégio de classe, causa da desigualdade social, não pode nunca ser vista como direito.
Começar por rever nossa profunda integração nos processos ecológicos da natureza é uma tarefa inadiável na construção de contra hegemonia. Mas isto deve ser feito em íntima relação com o desmonte de toda a ideologia do desenvolvimento econômico como tábua de salvação deste capitalismo selvagem. Temos que ter presente a ideia de que está difícil encontrar gente na nossa volta que não ache que o problema é apenas de alternativas de desenvolvimento. Enquanto não conseguirmos ver que o desenvolvimento é um mito, como bem definiu Celso Furtado em seu último livro, não sairemos do lugar. Estamos diante de uma ideologia, mais do que uma ciência ou filosofia de viver. Só isto vai nos custar muito suor, saliva e argumentação nos círculos de discussão que, espero, sejamos capazes de construir em nossas trincheiras. A única esperança é que o amanhã ainda não está definido, nele podemos influir.
Para encerrar, uma última pergunta: será que vale a pena viver sem lutar por seus ideais com esperança que outro mundo é possível?
Rio de Janeiro, 26 de setembro de 2017

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