Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

Neste domingo frio, de garoa fina e muito vento, penso que muita gente fez o que eu fiz e se encafuou no aconchego do seu lar. Lar? Que lar?  As marquises de prédios viradas refúgio para quem não tem outro abrigo podem ser consideradas lares? Andando pelo Catete, no Rio de Janeiro, num trecho de 5 quadras, em uma manhã qualquer, contei mais de 30 pessoas em tal tipo de “casa”. E, por acaso, ter como única proteção a cobertura de viadutos e passarelas é estar num local de amparo e aconchego? E quem se encolhe num banco de praça ou parque e estende uma lona de plástico por cima encontrou finalmente um lar? Na quarta feira passada, num trecho de 500m do Parque do Flamengo, contei 23 “lares” assim.
Tudo isto virou uma espécie de “tempero social” bastante indigesto a martelar na minha cabeça durante o preparo do almoço de família, com a companheira de longos anos, nossas filhas, o genro e os netos. Dá para comer e beber, apesar de tudo, mas bate fundo na consciência da gente o fato de milhões de pessoas anônimas, nossas conterrâneas, não terem com o que se alimentar e nem onde ficar. Como aguentamos tal afronta aos princípios e valores de compartir uma mesma humanidade e de viver juntos em sociedade, tão próximos e com muralhas tão segregadoras?
Com tudo isto circulando pela cabeça e decidido a fazer a minha crônica semanal, lembrei de meus tempos de professor, quando eu sugeria aos alunos procurar ver como a sociedade real se refletia nos pratos de comida. A gente vê nos “pratos”, incluindo a falta deles, as múltiplas facetas da desigualdade vivida, a estrutura social que a gera e o lugar dos diferentes comensais nela, até os condenados a passar fome. Pratos bem servidos ou apenas restos, banquetes ou mingaus ralos, refeições de horas certas ou incerteza sobre se haverá algo a comer amanhã, estes são os extremos de cardápios em termos de fartura. Por sinal, a palavra fartura é quase um sinônimo do bem viver, oposto da escassez e da exclusão social.
Alimento, porém, não é só comida no sentido de conjunto de ingredientes físico-químicos que ingerimos, indispensáveis ao viver. Nós, humanos, transformamos o alimento em cultura, em modos de viver a partir do que a natureza nos oferece generosamente em sua grandiosa diversidade, nos diferentes biomas do planeta. Atrás do alimento estão a agricultura e as culturas alimentares que se juntam às línguas, danças, ritos e religiões na constituição da fantástica diversidade de povos. Com tal modo de olhar, a comida ou sua falta, sua composição, cheiros e sabores ou mesmo a impossibilidade de escolhê-la, tudo vira um espelho da sociedade e do seu momento histórico.
Hoje, o nosso Brasil se tornou uma espécie de grande celeiro do mundo. Dominantemente, deixamos de praticar a agricultura em nome do agronegócio. Ideológica e politicamente, o tal slogan “agro é tech, agro é pop” revela a transformação da produção de alimentos em mera mercadoria, de commodities cujo valor é expresso em preço (mais exato, em dólares) e buscado não pela capacidade alimentar, mas pelo que gera de lucro. Até parece que não existem mais latifúndios, usurpação e grilagem de terras, trabalho escravo, assassinatos, agricultura familiar e sem terra. O velho Brasil se matizou de tech e pop e macdonaldizou a comida. Mas a estrutura social por trás é ainda mais selvagem e destrutiva com seus agrotóxicos, o “pacote do veneno”, que querem chamar de fitossanitários!
Mas há indícios de racismo e machismo na nossa comida? A gente nem imagina o quanto! A gente esquece que entre os pratos típicos da cultura brasileira, a feijoada na liderança, tem origem no milagre que as anônimas cozinheiras negras fizeram do que a Casa Grande reservavava para negros – feijão, charque e farinha de mandioca – mais os restos descartáveis de animais abatidos – rabos, orelhas, patas, etc. Seguindo este caminho, saberemos a incrível história da cultura culinária nacional mais genuína. Mas o racismo se manifesta até hoje, pois são dominantemente negras e negros os condenados a viver das sobras, como a população em situação de rua testemunha claramente. Em geral, ontem e hoje, a comida é ainda uma tarefa de cuidado nos lares totalmente relegada às mulheres.
Seguindo tal trilha a partir dos pratos de comida a gente chega, inevitavelmente, à bancada do agronegócio no Congresso Nacional. Apesar da enorme mudança demográfica – ao menos dois terços da população vivendo em cidades nada rurais – temos uma conjunto de representantes políticos totalmente identificados com o agronegócio. No Congresso que será eleito em menos de um mês e meio, muito provavelmente pelas projeções de analistas, a tal “bancada ruralista” vai crescer. O pior é que ela é mais para Bolsonaro do que para qualquer outro candidato para presidente.
Como dá para ver, a partir do prato de comida a gente pode ir longe na análise das relações estruturais e até conjunturais da sociedade. Não resolve as angústias e urgências, sem ver claramente saídas, nem o mal estar que é conviver com tantas mazelas em meio a abundâncias. Mas será que desta confusão política e eleitoral vai sair alguma luz?
Rio, 27/08/2018

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