Foto: Thiago Queiroz/ Fonte: Flickr

Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

Momentos como o que vivemos atualmente geram muito desânimo, pois a gente não vê saída no horizonte imediato. Resiste aqui e ali, tenta tornar difícil a tarefa do desmonte de leis, direitos e políticas democráticas, mas as perspectivas são sombrias. O desafio que temos pela frente é mais do que olhar o calendário político e tentar refazer o desfeito pelo golpe. Estamos diante de algo maior do que um acidente de percurso, pois ruíram as bases da frágil institucionalidade construída e está em curso entre nós um processo de transformação e adequação da democracia ao espectro do fascismo. O verdadeiro sentido do golpe no nosso Brasil é adequar o poder e as políticas aos interesses de um capitalismo selvagem, hoje globalizado, predador de recursos naturais, violento e concentrador de riquezas. Simplificando, trata-se de priorizar negócios e lucros, reduzindo cidadania e direitos, algo que pensávamos ser impossível impor ao país novamente.
O que nos deve preocupar estrategicamente é a perda no campo do imaginário, dos princípios e valores, da visão e do projeto de cidadania e democracia para o país. O golpe, em termos práticos, foi no campo do poder político, em conluio com o poder Judiciário. Em termos reais, foi arquitetado nos luxuosos e reservados salões de encontro dos donos reais do poder, os 1% de capitalistas e especuladores. No entanto, as condições para ele foram gestadas no seio da sociedade civil. Sem dúvida, a grande mídia teve um papel ativo na disputa de corações e mentes. Mas não dá para ignorar a fragmentação e a perda de vitalidade do movimento sindical, a fragilização das organizações de cidadania ativa, os impasses dos movimentos sociais diante de governos dispostos a dialogar sem nada ceder. Cabe destacar que deixamos de fazer o paciente trabalho de educação popular para a cidadania – de prática da liberdade, como dizia Paulo Freire -, campo tomado por grupos religiosos pentecostais pregadores do sucesso e mérito individual. Acima de tudo, apesar das facilidades das novas tecnologias de informação e comunicação, não soubemos criar uma rede de comunicação cidadã para se contrapor à avassaladora grande mídia. Perdemos a batalha vital das ideias e sentidos, com impacto nas mobilizações de cidadania. Este é o ponto chave, na minha análise.
Nossa perda foi da frágil hegemonia de princípios e valores democráticos que havíamos conquistado umas três a quadro décadas atrás, na luta contra a ditadura, ou melhor, contra o bloco empresarial-militar que sustentou a ditadura. Foi algo construído pacientemente e as vitórias obtidas, como a Constituinte e a Constituição Cidadã, foram aquelas possíveis na ocasião, mas longe do desejável. Isto veio abaixo agora, urdido em nosso seio, sem termos dado a devida atenção ao que vinha acontecendo. O grave é que derrotas assim marcam história, são difíceis de reverter. Estamos diante de movimentos orgânicos, processos que exigem ousadia e determinação, pois se trata de disputa de hegemonia, de rumos a seguir como coletividade.
Aqui cabe lembrar que a disputa de hegemonia é parte de um tripé para que mudanças substanciais na sociedade, na economia e no poder possam ocorrer. Transformações acontecem quando se combinam vulnerabilidade sistêmica/estrutural + um movimento cidadão amplo e irresistível, uma comunidade constituída em torno a valores e princípios, visões e análises, ideias-força/hegemonia + uma vontade com capacidade de dirigir e organizar/partido e coalizões de poder. Mas o processo de disputa e conquista de hegemonia é condição sine qua non de mudanças sustentáveis no tempo. Isto se faz no seio da sociedade civil, no seio da cidadania, como a questão se apresenta hoje para nós.
Por isto, penso que a tarefa mais estratégica que temos no momento é nos debruçar na definição das condições de disputa de hegemonia. O mais grave de tudo é a perda de hegemonia de ideias de democracia radical e substantiva como modo de construir outro país, outra sociedade, voltada para a busca de emancipação social, com maior igualdade de direitos possível, no respeito à integridade dos sistemas ecológicos e com uma economia a serviço do bem estar coletivo. Enfrentar o desafio de pensar como disputar hegemonia de princípios, valores e projetos democráticos para, então, pensar como transformar o poder, as políticas e este predador desenvolvimento econômico, voltado aos interesses de 1%, é uma tarefa inadiável. Requer ousadia, determinação e, sobretudo, muita paciência, pois se trata de criação de um vibrante movimento cultural de novo tipo. O passado nos ajuda só em termos de não voltar a cometer os mesmos erros. Na verdade, tudo precisa ser reinventado diante de novas condições, sabendo que mudança mesmo só ocorrerá se as outras condições também se criarem. Ou seja, uma filosofia ativa é indispensável para gestar poderosos movimentos de cidadania, mas ela está longe de fazer a história sozinha.
Rio de Janeiro, 09/10/2017

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