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Ideias e grandes transformações históricas


Ilustração de Marinho Lutero e as 95 teses que baseiam a Reforma Protestante

Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

No mês de outubro que passou, mais uma vez, fui levado a rever Antônio Gramsci e sua arguta reflexão sobre o papel dos movimentos filosóficos e culturais na construção de hegemonias históricas como uma espécie de fermento e liga aglutinadora de forças sociais, com capacidade de moldar sociedades inteiras. A obra monumental de Gramsci em termos políticos – Cadernos do Cárcere – são notas escritas em período de grande adversidade, de ascensão do fascismo, em que ele era um preso político. Fui levado a tal revisão devido a importantes datas históricas: cinco séculos das teses de Martin Luther, que desencadearam a grande reforma do cristianismo e o nascimento do protestantismo como parte do processo histórico de emergência da modernidade na Europa; e um século da Revolução Bolchevique na Rússia Imperial Czarista, sob a liderança de Lenin, eventos que marcaram profundamente o século XX.
Entre nós e no mundo inteiro, foram abundantes os livros e artigos fazendo balanços críticos da histórica revolução comunista e seu impacto. Muito menos se publicou sobre a reforma protestante, que recebeu algum destaque apenas na grande mídia, ao menos aqui no Brasil. No entanto, para entender a nossa história como humanidade e, sobretudo, para aprender como grandes transformações ocorrem, os dois processos merecem exame por quem se preocupa em analisar o difícil momento que passamos, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Mudanças são sempre possíveis, mas como se criam as condições? Qual o lugar das ideias, dos grandes pensadores, da determinação política de atores concretos, das circunstâncias?
Não pretendo aqui avaliar estes grandes momentos da história. Meu objetivo é, em particular, reconhecer o papel de fermento e liga das grandes ideias e pensadores, sabendo que isto não basta para transformar realidades, mas também que, sem as ideias e os pensadores ousados, novos períodos históricos não se constituem de forma mais duradoura. Penso que aqui estou praticando o que Gramsci propõe quando define ser fundamental o tipo de  “blocos históricos” para conduzir as transformações no poder e na sociedade, blocos de idéias/vontade + condições históricas dadas.
Não sou profundo conhecedor do protestantismo, mas como filósofo de formação e sociólogo por necessidade do ativismo cidadão, sempre procurei destacar o papel da consciência e da reflexão na moldagem da vontade política pessoal e coletiva. A pedagogia como prática da liberdade, na bela definição de Paulo Freire, é uma espécie de bíblia para mim sobre ser e viver aprendendo sempre a exercer a minha humanidade como cidadão do mundo. Assim, respeito e valorizo todas as religiões no que tem de busca de mais e mais sentido de viver dignamente como parte da humanidade. Mas desprezo e combato todas as intolerâncias e ódios que religiões podem acabar alimentando. No caso do protestantismo – uma entre muitas formas de ser religioso – o que me influenciou muito foi a obra de Max Weber, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Como assim?
Estive em Berlim, de 22 a 28 de outubro, participando de reunião de grupo de parceiros internacionais com dirigentes da agência de cooperação Pão Para o Mundo, das Igrejas Protestantes da Alemanha. No dia 27, nos foi dada a oportunidade de visitar a pequena Wittenberg, onde, em 31 de outubro de 1517, Lutero afixou na porta da Catedral-Universidade as famosas 95 teses, marca fundadora da Reforma. Na ocasião, tanto pela visita guiada da genial “National Special Exhibition Commemorating the Anniversary of the Reformation”, quanto pelos diferentes lugares de vida e pregação do monge Lutero, entendi um pouco do que buscava. Como movimento religioso, filosófico e cultural não dá para entender a Modernidade sem o protestantismo. Voltei convicto de que Max Weber foi perspicaz ao associar a ética protestante ao espírito inovador e empreendedor do capitalismo. E isto marca a humanidade há pelo menos cinco séculos.

Marca comemorativa do centenário da Revolução Russa

Sobre a outra data – os cem anos da Revolução de Outubro na Rússia – passei mais por um processo de meditação/revisão pessoal de meus conhecimentos a respeito e de revisão de certas convicções. Sou de uma geração que chega à juventude e à vida adulta influenciada pela grande produção intelectual e política marxista do pós II Guerra Mundial, das independências na África e Ásia, da polarização USA-URSS, da Revolução Cubana e do experimento socialista de Allende no Chile, de maio de 68 e da Guerra do Vietnam, das ditaduras militares latino-americanas. Enfim, me estruturei intelectual e politicamente antes da avassaladora contra reforma capitalista com a sua hegemonia de globalização neoliberal do mundo. Também registro aqui, num esforço de entender minhas próprias buscas de hoje, a aventura pessoal e coletiva do Fórum Social Mundial a partir de 2001, como esforço de construção de movimentos planetários de confronto ao capitalismo globalizado. Com muita dor e frustração, vivo hoje o desafio de ver onde erramos que, ao invés de crescer como movimentos por um outro mundo, por uma civilização planetária, estamos perdendo força a cada ano.
Assim, minha reflexão sobre o que se passou na Revolução Bolchevique, além de fortes emoções com o sonho que despertou em grande parte da humanidade, foi sobretudo tentar entender a força das ideias e dos atores em momentos dados. Nisto vejo alguns dados fundamentais que destacam a tal formação de “blocos históricos” de Gramsci. Tanto Lenin como Lutero são personagens pensadores de seus momentos históricos, pessoas ousadas sem dúvida, mas que souberam captar o espírito do tempo para assim dizer. Ou de outro modo, foram  grandes figuras que captaram e sistematizaram anseios e aspirações que já pululavam nas respectivas sociedades, puxadas por movimentos populares, por dramas e lutas socais em curso, por outros que tentaram fazer antes o que eles fizeram no momento mais propício.
Termino voltando ao ponto de origem desta minha crônica. As grandes correntes de pensamento, filosofias, teologias e culturas desempenham um papel estratégico e precisam de tempo para conquistar corações e mentes. Mas quem faz os movimentos transformadores, de forma prática e histórica, são pessoas que se sentem parte de tais correntes de pensamento. Por isto, não existem grandes ideias sem grandes movimentos humanos, sociais e culturais, assim como não existem grandes e transformadores movimentos sem grandes e generosas ideias que lhes dão forma histórica. Enfim, a sociedade civil em sentido amplo – o espaço da vida familiar, associativa, cultural, de convivência, de práticas educativas e investigativas, religiosas, de festas, de debates e comunicação, da socialização e compartilhamento – é o embrião das grandes transformações políticas e econômicas na sociedade. É nelas que afloram os grandes movimentos filosóficos e culturais.
Rio, 06/11/17

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