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Alan Brum fala sobre operações das Forças de Segurança no Complexo do Alemão: “Era uma situação de negação da vida”

por Clara Araújo

No último 20 de agosto, mais de 4 mil integrantes das Forças Armadas e 70 policiais civis realizaram uma operação nos Complexos da Penha, da Maré e do Alemão, no Rio de Janeiro. Uma ação conjunta que impactou na vida de cerca de 550 mil moradores e moradoras das 26 favelas afetadas. Como resultado, números desanimadores: 11 mortos (3 militares e 8 civis) e diversas denúncias de violação de direitos da população. Em nota, o Ibase manifestou seu repúdio à forma como as operações foram realizadas.

Alan Brum Pinheiro nasceu no Complexo do Alemão. Depois de morar na Baixada Fluminense, retornou ao Alemão já adulto. Lá, foi cofundador do Instituto Raízes em Movimento. Alan também é conselheiro do Ibase e sempre pautou sua atuação no fortalecimento do desenvolvimento humano, social e cultural das favelas cariocas. Nesta entrevista, ele fala sobre a situação atual do Complexo do Alemão, sobre como moradores(as) de favela sentem a intervenção federal/militar na segurança do Rio e sobre caminhos para tentar reverter esse quadro de desigualdade e preconceito.

(Foto: Arquivo Pessoal)

 
Qual a situação do Complexo do Alemão hoje?
O Complexo do Alemão e o Complexo da Penha, hoje, não têm mais ocupação do Exército. As forças militares saíram no dia 23 de agosto. Mas o que aconteceu durante essa semana em que estiveram lá é algo que precisa ser discutido e falado.
Houve a ocupação do Complexo da Penha, de forma mais contundente, e também do Complexo do Alemão. E, com essa invasão de militares, começaram a chegar um grande número de denúncias de violações gritantes. Primeiro, as revistas de crianças e mulheres, feitas por homens, o que não é permitido. Depois, uma quantidade imensa de relatos de pessoas tendo celulares apreendidos e vasculhados sem autorização. A terceira violação é a invasão de casas de forma absurda, tanto no Complexo do Alemão quanto na Penha. Aliás, é do Complexo da Penha que vem as denúncias sobre a pior de todas as violações: os assassinatos. E, sobre essa situação, temos relatos internos e relatos externos.
Os relatos internos trazem uma quantidade de mortes maior do que a que vem sendo noticiada. Algumas pessoas falam entre 20 e 30 mortos. As fontes mais seguras com as quais eu tive contato falam em 19 pessoas mortas.
Houve ainda o cerceamento de ir e vir na favela da Chatuba, no Complexo da Penha. As forças de segurança cercaram uma área e as pessoas, moradores(as) da comunidade, não podiam mais circular. Essa é o mesmo local em que há a manobra de água (ato de “liberar” o abastecimento para determinadas áreas da favela) e o manobreiro da Chatuba não podia chegar ao local que precisava para poder fazer seu trabalho. O resultado foi que isso gerou falta de água em muitas casas da favela.
 
O que as forças de segurança alegavam para haver essa proibição?
A única resposta que a gente tinha era de aquilo era uma ação estratégica, um segredo de estado. Nenhuma explicação a mais.
Aliás, em todas as violações de casas ou de celulares, não temos nenhum relato de que os militares ou os policiais tinham mandado para fazer isso. Foi tudo feito à revelia. Não houve nenhum documento que pudesse respaldar esse tipo de ação. O que existia era só a fala de um tenente que comandava a operação no morro da Chatuba. Segundo ele, o motivo do bloqueio daquele espaço não poderia ser revelado por ser questão estratégica e de segurança.
Além disso, a fala oficial justificava as mortes dizendo que “só foi alvejado quem reagiu”. Fato que os moradores contestam quando afirmam ter visto pessoas querendo se entregar para a Polícia e, mesmo assim, sendo mortas. Era uma situação de negação da vida, independente de quem seja.
 
Como foi a prisão dos cinco jovens que estavam dentro de casa?
Essa é outra violação gritante que aconteceu durante essa operação. Os meninos estavam em casa jogando vídeo game quando as forças de segurança entraram, pegaram os celulares deles e viram mensagens do tipo: “cuidado, o exército está subindo”. Mensagens como essa quem mora em favela costuma receber por que é algo que, infelizmente, faz parte do nosso cotidiano. É o tipo de coisa que se manda para um parente, para um amigo. É questão de segurança. Porém, as forças de segurança alegaram que essas mensagens “pegas” nos celulares dos jovens comprovavam a associação ao tráfico. E levaram os cinco meninos presos. Uma rede enorme se mobilizou. A Defensoria Pública entrou no caso e todos já foram soltos.
 
O que motiva esse tipo de ação neste momento atual?
A gente está vivendo o calendário eleitoral. Junto com isso, temos uma intervenção militar que se encaminha para um final frustrante para quem se propôs a fazê-la. Neste cenário, várias possibilidades se desenham, uma delas é a de, inclusive, inviabilizar as eleições a partir de um estado de exceção.
As Forças de Segurança também precisam se mostrar ativas para alguns setores da sociedade. A intervenção tem a aprovação de mais de 60% da população carioca. Isso por que a pesquisa feita fala sobre a intervenção como um todo. Se a pergunta fosse somente sobre a intervenção nas favelas, eu acho que esse índice subiria.
Então, eu considero que as operações, como as que ocorreram no Alemão, na Penha e na Maré, são midiáticas, eleitoreiras e não resolvem o problema do tráfico de drogas, assim como nenhuma política de segurança das últimas décadas. Isso por que o foco dessas ações está errado. Não há discussão efetiva sobre monitoramento de fronteiras, ou sobre a apreensão de armas com pessoas das Forças Armadas, não se discute a participação de políticos nos esquemas do tráfico. E aí só se combate o varejo, só a venda das drogas. É um enxugar de gelo que só vai produzir cada vez mais mortes.
 
E quais os caminhos para mudar essa situação?
Um dos caminhos é discutir seriamente a descriminalização e a liberação das drogas. Esse é um tema que urge ser colocado em pauta. É fundamental. Mas sei que só isso não vai resolver. Ao contrário do que até alguns movimentos acreditam, não é só descriminalizar e liberar as drogas que resolve o problema da violência. Essa é uma questão estrutural que envolve trabalho e emprego, por exemplo.
Hoje, os jovens nas favelas, sobretudo o jovem negro, têm uma história pautada na negação de políticas públicas e de oportunidades de geração de renda. Isso é histórico e desemboca na noção de quem vive nas favelas é parte de um “lumpemproletariado”, como dizia Rosa Luxemburgo. Ou seja, é uma seção desprezível e descartável dos trabalhadores. Com isso, chegamos à legitimação de operações como as que a gente viu no Complexo da Penha e do Alemão recentemente. Esse genocídio sistemático tem sentido nessa lógica.
 
Quais as ferramentas que a população tem para se defender ou se resguardar em casos de violações de direitos por parte do Estado?
A gente está num contexto da política nacional que é o de desconstrução de direitos. Com isso, há muito pouco a ser feito sobre as atrocidades do Estado. O que nos deixa, como sociedade, um pouco anestesiados para reagir. E, quando as violações se dão nas favelas, isso se torna ainda mais claro.
Estamos num momento crítico em que vemos a parte da nossa sociedade aceitar a radicalização dos processos, e até querendo que cada vez mais haja repressão sobre as favelas. Com isso, quem mora nas comunidades fica ser ter pra onde correr.
Para mudar isso, o que a gente tenta fazer é juntar os nossos pares, tentar dar voz e visibilidade para quem é tão excluído. Nos unimos às organizações que defendem os Direitos Humanos, como a OAB, a Ouvidoria da Defensoria Pública, a Comissão de Direitos Humanos da Alerj, os movimentos sociais. É um processo de muita solidariedade.
 
O impacto das notícias sobre as operações policiais em favelas da Zona Norte é diferente das que estão localizadas na Zona Sul?
O posicionamento geográfico na cidade define muitas coisas. O entorno suburbano não é algo que gere tanta preocupação quanto os bairros da Zona Sul. Mas, mesmo no Santa Marta, por exemplo, o mais triste é as pessoas só se preocuparem com o entorno. No Pavão-Pavãozinho, no Cantagalo, quando há ações da Polícia, a preocupação mais geral é só com quem está fora da favela e não com quem mora lá. E esse é o pensamento dominante de que a favela é o lugar do mal, é o lugar que concentra vários estigmas da sociedade. Com isso, dentro da favela pode tudo.
A gente teve três semanas de enfrentamento e morte em Santa Cruz, na Zona Oeste da cidade, e ninguém falava sobre isso. Na Baixada é a mesma coisa. E isso faz parte dessa lógica estabelecida. Há uma invisibilidade de alguns espaços. Os conflitos que envolvem milícia, por exemplo, não são comentados.
 
Qual o sentimento diante de tanta violência e descaso?
Às vezes dá desânimo. A gente pensa: o que estamos fazendo? O que a nossa militância resolve? Mas aí, se você for hoje no Fórum Grita Baixada, por exemplo, ou em outros movimentos que estão começando a se estruturar, a formar redes, aí dá pra olhar para a realidade das favelas e ver que nós temos uma rede de apoio. Há acúmulo, há a experiência de sofrimento e, com isso, a gente tem como se unir, como acionar os pares.
A gente faz parte de um processo histórico que está em andamento da construção de uma autodefesa. Autodefesa no sentido de conseguir reagir e criar caminhos viáveis para cessar as violações.

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